Estreia hoje nos cinemas Ainda Estou Aqui, de Walter Salles Jr., o mesmo diretor de Central do Brasil.
Por Fernanda Sampaio Lourenço

Contar histórias sobre momentos já tão explorados vale a pena? A resposta mais imediata para mim seria: “sim”. É claro que para torná-las interessantes é preciso saber o que, como e por quem dizer. Talvez essa seja a fórmula do sucesso do novo filme de Walter Salles “Ainda Estou Aqui”. A obra, que é inspirada no livro de Marcelo Rubens Paiva, possui o mesmo nome da produção e traz uma reflexão e denúncia sobre o período da ditadura militar brasileira. O tema, que já foi e ainda é retratado em diversos trabalhos, se diferencia pelo enfoque trazido.

A história é ambientada no Rio de Janeiro de 1970 e gira em torno do desaparecimento do ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva, interpretado por Selton Mello, durante o período da ditadura militar. O diferencial é que o ponto de vista não é o dele, mas sim, o de sua esposa Eunice Paiva, que precisa conciliar a busca pelo saber do destino do desaparecido marido e o novo futuro de si e de seus cinco filhos. A personagem, interpretada com maestria pela atriz Fernanda Torres, conseguiu transmitir ao telespectador a fragilidade que o trauma trouxe para sua vida.

Cartaz do filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles/ Imagem: Divulgação

O filme acompanha as mudanças de cenários na vida de uma família que sofreu com o desaparecimento de seu patriarca do dia para noite. Os ditadores, que foram representados de uma forma não estereotipada pelos figurinos, invadem a casa da família Paiva e levam Rubens para um local desconhecido pelos parentes, e eventualmente, pelo telespectador.

Esse desfecho foi anunciado nas cenas iniciais da produção, uma vez que o ex-deputado começa a receber ligações tarde da noite e fazer reuniões às escondidas, o que não passou despercebido pela personagem Eunice. Assim, a história vai se desenvolver através do viés dela em cima da busca pelo paradeiro do marido e, logo mais, por justiça.

É interessante como a filha mais velha, Vera Silvia (interpretada por Valentina Herszage), nos momentos em que aparece quase sempre é representada gravando através de uma filmadora, a família e os acontecimentos. O diretor deixou com que o telespectador visse os cenários gravados como se a filmagem fosse dele, ou seja, determinadas aparecem como gravações antigas.

Eunice e Rubens na praia em frente a sua casa aproveitando a tarde com a família/ Imagem: Divulgação.

A interessante forma como o diretor conduziu a ambientação do filme é percebida através das cores de tela. No começo, quando a família é apresentada, o predomínio de tons quentes é reconhecido, trazendo um ar de felicidade e união constantes na narrativa. Quase imperceptível, as cores vão esfriando ao decorrer das ligações e reuniões “esquisitas” que Rubens participa. Quando os militares invadem a casa da família em busca do ex-deputado, percebe-se que o marrom se torna predominante. E de forma brusca, para demonstrar a confusão, quando Eunice é levada para o quartel para as sessões com os militares a tela fica fria, tons azul marinho e preto são constantes. Reparar que, mesmo quando Eunice volta para a família, as cores não voltam por completo é uma percepção de que ainda falta algo, falta Rubens. 

Eunice nas dependências do DOI-CODI carioca, onde permaneceu durante 12 dias sendo interrogada/ Imagem: Divulgação.

Não se surpreenda, caro leitor, se por agora em diante a análise ficar leve, confesso que em determinado momento me esqueci de que estava lá para observar as qualidades do filme. A verdade é que me perdi na história, fui cativada. A trilha sonora trouxe uma brasilidade que me surpreendeu. Com canções de Caetano Veloso, Robertos Carlos e Tom Zé, a ambientação musical do filme me trouxe conforto e familiaridade com nomes tão marcantes da cultura brasileira. Os sons utilizados para gerar tensão cumprem seu papel, emocionam e causam desconforto equilibradamente. 

A finalização, por outro lado, me deixou inquieta. Foi rápida, com duas quebras temporais longas. A incisiva falta das cores vibrantes é um anúncio de que não se sabia nada sobre o paradeiro de Rubens. A decisão de Eunice de se mudar do Rio de Janeiro para São Paulo demonstra uma nova perspectiva e atitude que a personagem teria a partir daquele momento. Para ela, buscar os estudos no curso de direito foi a forma de fazer justiça pelo seu marido. Infelizmente, por uma questão de tempo, como imagino, não temos um aprofundamento desse momento vivido por Eunice.

Apenas os minutos finais foram utilizados para contar os desfechos da vida da personagem, que se tornou advogada e engajada em lutas sociais e políticas. Houve, no entanto, a referência de que Eunice era uma das poucas especialistas em direito indígena do país. O filme também mostra que ela conseguiu, 25 anos depois do desaparecimento de Rubens, que o Estado brasileiro emitisse oficialmente o atestado de óbito de seu marido.

Com mais uma quebra temporal, em torno de 15 anos depois, Eunice, agora interpretada por Fernanda Montenegro, aparece em uma cadeira de rodas e com alzheimer. A ambientação da família reunida para um almoço traz familiaridade ao telespectador. É com uma cena simbólica, em que a personagem está em frente a uma televisão, quando uma reportagem sobre o período da ditadura militar está sendo apresentada e cita Rubens, que Eunice parece ter seu único momento de lucidez desde que aparece já doente. O olhar de Marcelo, seu filho e autor do livro que inspirou a obra, traz uma emoção final para o filme que se encerra.

Fernanda Montenegro dá vida à última etapa de Eunice/ Imagem: Divulgação

O filme estreia nos cinemas nesta quinta-feira (07). A produção recebeu diversos prêmios como Festival de Veneza: Melhor Roteiro e Green Drop Award e está sendo indicado para receber mais seis prêmios como o Leão de Ouro, Leão de Prata de Melhor Diretor, Volpi Cup de Melhor Atriz, Copa Volpi de Melhor Ator do Festival de Veneza, Festival de Veneza: Prêmio Especial do Júri e Prêmio Marcello Mastroianni para Melhor Ator ou Atriz Jovem, além de ter sido o escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para disputar uma indicação na categoria Melhor Filme Internacional no Oscar 2025. 

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