Conheça o filme “Afterwar” e as consequências permanentes do conflito em Kosovo

Exibido na Mostra de São Paulo, o filme de Birgitte Stærmose é um retrato da vida no limbo pós-guerra

Por Ana Luiza Oliveira

Entre os dias 17 e 30 de outubro, aconteceu a 48° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que contou com a exibição de mais de 400 filmes. No meio desses todos, o filme “Afterwar”, lançado mundialmente em fevereiro deste ano, chamou a atenção por ter sido produzido ao longo de 15 anos e por sua temática: a trajetória depois da guerra de crianças em Pristina, a capital de Kosovo, até se tornarem adultos. O longa-metragem, dirigido por Birgitte Stærmose, traz as repercussões desse conflito marcante na história do país a partir das difíceis condições de vida, traumas e sonhos por um futuro melhor encarados pelas personagens em seus relatos.

A ideia para a produção surgiu em uma visita da diretora dinamarquesa a Kosovo, quando foi exibir um curta-metragem em um festival no país. “Fui convidada em 2007, pouco depois do fim da guerra, e pensei ‘quando vou poder visitar um país que está no pós-guerra? Nunca’, então eu fui e fiquei chocada com o que vi”, contou Stærmose, em entrevista exclusiva em um dos dias de exibição do filme na Mostra de São Paulo.


“Era tudo muito básico, de certa forma, porque as pessoas estavam focadas em fazer o lado prático da vida funcionar de novo. E, então, tinha uma combinação de trauma profundo e coletivo com também o fato de que aquele era o país mais novo da Europa e, por isso, estava super energético, cheio de pessoas jovens que estavam começando a vida delas com ideias e sonhos, como jovens devem ser”.


O contato com aquele cenário e com os diretores de cinema de lá possibilitou a criação do curta-metragem “Out of Love”, que acompanha algumas crianças que trabalhavam nas ruas vendendo cigarros, cartões telefônicos e outros produtos para ajudarem as suas famílias a se reerguerem depois da guerra. Lançado em 2009, o curta é como a primeira parte do filme deste ano, e ambos seguem um formato híbrido que se encaixa entre a ficção e o gênero documentário. Isso porque, durante o tempo de produção, as crianças eram entrevistadas para que, depois, seus relatos fossem transformados em roteiro e interpretados por elas.


“Quando conhecemos eles, todos eram crianças ainda e é muito diferente a maneira como trabalhar com crianças do que com adultos, você precisa se comportar de outra forma. Por isso, foi um longo processo de quase 1 ano e meio até começarmos a filmar, porque queríamos conhecê-las e entrevistá-las várias vezes para construir o filme baseado nos relatos que foram transformadas no roteiro. Tudo foi escrito a partir disso, das histórias reais delas”, explicou a diretora.

“Afterwar” também foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Berlim, conhecido como Berlinale (Fonte: divulgação/ Magic Hour Films)


Mantendo contato com as crianças que participaram da produção, a equipe continuou com a curiosidade para descobrir como cada uma seguiria sua vida e, por essa razão, Birgitte voltou para Kosovo em 2017 para retomar as filmagens com a ajuda delas do que se tornou uma espécie de spin-off do curta. As imagens retratam como estão os – agora – adultos, contando em monólogos suas experiências, com o plano de fundo de uma cidade ainda em reconstrução após as violências e destruições da guerra.


Para a diretora, que participou de outros projetos como os primeiros episódios da série produzida para o canal de televisão Starz “A Princesa Espanhola”, a indústria cinematográfica e a população em geral estão acostumadas a entender os conflitos como se tivessem um começo, meio e fim, ou que houvesse um problema e depois se instaurasse a paz. A visão, no entanto, é diferente para quem vive essas situações e o longa foi a oportunidade de apresentar essa perspectiva.


Como comentou durante a conversa, a intenção com esse filme era contar a história sobre a continuidade e sobre os efeitos a longo prazo da guerra. “Quando pensamos em guerra sempre focamos nas bombas, tiroteios, mortes e destruição, mas não nos preocupamos tanto com algo tão marcante quanto isso que é se recuperar. Acho que às vezes terminamos guerras sem pensar o suficiente sobre o quão difícil é se recuperar disso”.


Durante o documentário, são conhecidas as histórias de Besnik Hyseni, Gezim Kelmendi, Xhevahire Abdullahu e Shpresim Azemi, comparando as suas vidas desde 2008 até 2023. Eles, que não atuavam antes disso, foram papel principal para o filme, visto que contam seus próprios desafios e sonhos, enfrentando as permanentes dificuldades da pobreza e da falta de oportunidades para o futuro.

Gezim Kelmendi, que participou dos filmes “Out of Love” e “Afterwar” (Fonte: divulgação/ Marek Septimus Wieser)


Birgitte considera como desafiador ter escolhido retratar o que acontece no pós-guerra e as histórias de pessoas reais, mas também como uma tentativa de que não sejam esquecidas. Sobre isso, trouxe à tona outros conflitos que estão acontecendo atualmente e como as consequências deles correm o risco de serem, além de parecidas com as de Kosovo, também ignoradas.

“Fomos do pensamento de que a guerra na Ucrânia está muito horrível para o de que o que está acontecendo em Gaza é muito horrível. Não conseguimos lidar com duas guerras ao mesmo tempo, mal lidamos com uma. E, ainda, se tem a situação atual do Sudão também e não estamos olhando para isso. Não absorvemos o suficiente, somos muito superficiais”, concluiu.

A Guerra em Kosovo

Com o fim da União Soviética, em 1991, começaram os movimentos pela independência de repúblicas pelo mundo todo, incluindo dentro de um dos países da região dos Balcãs, a Iugoslávia, até então formada por seis repúblicas (Bósnia-Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Macedônia, Montenegro e Sérvia) e duas províncias autônomas (Kosovo e Voivodina). Comandada por Josip Broz Tito, o país vivia um regime ditatorial que continha os focos de separatismo entre os povos que divergiam constantemente por suas diferenças culturais e religiosas, já que viviam ali ortodoxos, católicos e muçulmanos.

No ano de 1980, entretanto, com a morte do presidente Tito se acentuaram os descontentamentos no relacionamento entre as repúblicas e, a partir de então, iniciou-se o processo que resultaria na dissolução da Iugoslávia. A Eslovênia foi a primeira a se declarar independente, em 1991, e depois veio a Croácia. As movimentações entre os países acirraram o conflito na região, e durante a tentativa de independência da Bósnia-Herzegovina desencadeou-se uma guerra que teve fim apenas em 1995.

“The Former Yugoslavia: A Map Folio”, publicado pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, em 1992

O novo governo, depois de Tito, foi de Slobodan Milosevic, que era o então presidente da Liga Comunista da Sérvia e era contrário à independência de Kosovo, ainda que a província que fazia parte do território sérvio possuísse maioria albanesa e almejasse se separar. Dessa forma, promoveu uma “limpeza étnica” e expulsou albaneses da administração kosovar, o que agravou ainda mais a situação.

Para o professor do Departamento de Ciências Humanas da Unesp e historiador Maximiliano Martin Vicente, o conflito não parecia tão grande para quem via de fora, mas estava muito violento e recordou notícias de “escudos humanos” durante a guerra, quando as forças sérvias amarraram reféns na frente de prédios como o depósito de munições para que não pudesse ser destruído.

“Foi muito violento, com pessoas decapitadas, mortes, destruição da forma mais violenta possível e, evidentemente, o que estava por trás eram mundos diferentes se enfrentando por um espaço”, observou.

Em 1999, 25 anos atrás, após serem descobertos 40 albaneses de Kosovo mortos no vilarejo de Racak, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) interveio. Todavia, a decisão é uma polêmica relembrada até hoje, por ter acontecido sem o mandato da Organização das Nações Unidas, a ONU, uma vez que poderia ter sido vetada por países como a Rússia e a China, além de ter ido contra o princípio fundamental do estabelecimento da paz pelo Conselho de Segurança, que deveria aprovar em conjunto qualquer tipo de intervenção.

Ainda que seja considerada por muitos uma ação necessária para a independência de Kosovo, as bombas lançadas pela OTAN causaram mortes e destruição no país. Doutor em história social pela USP, Maximiliano considerou a ação violentíssima e, assistindo aos outros conflitos recentes, complementou dizendo que “o poder de veto deve determinar a força dos países e o fim da conversa”.


“A indústria americana quer a guerra, de qualquer forma, então foi uma maneira de dizer ‘estamos aqui e estabelecemos a ordem’, mas não estabeleceu ordem coisa nenhuma. No lugar disso, deveria se incentivar a diversidade cultural e o diálogo, estabelecendo os limites geográficos para determinadas regiões e determinados povos que é o que as pessoas querem: um território em que se possa ter sua identidade e se desenvolver tranquilamente”.

Kosovo declarou sua independência em 2008, porém ainda não é reconhecido por alguns países, como Rússia, China, Brasil, alguns da União Europeia e a Sérvia. Esse cenário contribui para que a recorrência de conflitos e acirramentos no país continuem, além de revelar, como em “Afterwar”, que “a guerra não é apenas um momento no tempo”.

Segundo o professor Maximiliano, um resumo dessa história seria que “enquanto não se levar em consideração os fatores culturais, as diversas etnias e os diversos grupos, a guerra não acaba”.

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