Medida está em vigor desde agosto e tem recebido críticas de autoridades e organizações brasileiras
Por Ana Helena Masson Maiolino

Em julho de 2024, a Polícia Federal (PF), órgão responsável pelo controle migratório, concluiu que imigrantes sem documentação adequada são aliciados por grupos criminosos. A maioria vem de países asiáticos e quer chegar aos Estados Unidos e ao Canadá. A partir disso, iniciaram-se discussões para tirar o Brasil da rota de tráfico e contrabando de pessoas.

Então, em 26 de agosto, uma nova regra entrou em vigor. Imigrantes que desembarcarem no país com a intenção de seguir viagem para outro e não tiverem visto de entrada no território brasileiro terão de seguir viagem para seus destinos finais ou retornar às nações de origem imediatamente. Isso se aplica, apenas, aos viajantes estrangeiros provenientes de nações que o Brasil exige visto de entrada, documento oficial, concedido pelos consulados no exterior, que possibilita o ingresso e a permanência temporária de cidadãos estrangeiros em determinado país.

A medida faz parte das novas regras de acolhimento dos imigrantes e a expectativa das instâncias federais é que, com a restrição, os estrangeiros sem visto comecem a ser recusados no Brasil. Assim, as companhias aéreas devem garantir que eles sigam para o destino final previsto na passagem. Os procedimentos, segundo as autoridades brasileiras, não significam uma mudança na política de refúgio do Brasil e tem como único objetivo manter uma migração justa, ordenada e segura.

No entanto, alguns grupos discordam. A Missão Paz, instituição de apoio e acolhimento a imigrantes e refugiados, em atividade desde os anos 1930, manifestou preocupação com a mudança nas regras de solicitação de refúgio. Para eles, o cenário é de violação do direito de acesso ao pedido de refúgio e o Estado brasileiro deve evitar criminalizar quem chega ao país pedindo proteção.

Para o Instituto Adus, organização não governamental (ONG) que promove a integração de refugiados na sociedade brasileira desde outubro de 2010, a medida vai contra o princípio de proteção internacional dos refugiados, garantido pela Lei de Refúgio de 1997, e aos tratados internacionais que o Brasil ratificou, em 1951, na Convenção de Genebra.

“A decisão de barrar a entrada de migrantes sem visto viola os princípios da não devolução e da acolhida humanitária, além de interferir na competência do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) em deliberar sobre o reconhecimento do status de refugiado”, explicou. Além disso, a Lei de Migração prevê que, independente da forma de ingresso em território nacional, o migrante ou refugiado tem assegurado o direito da regularização migratória, outro ponto de desrespeito da nova legislação.

Para Cynthia Carneiro, doutora em Direito Internacional desde 1998, professora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora, desde 2012, do GEMTI, Grupo de Estudos Migratórios e Apoio ao Trabalhador Imigrante há, atualmente, uma crítica imensa em relação às teorias migratórias. Ela explica que o imigrante internacional migra voluntariamente, “geralmente vinculado a uma melhoria de vida, a um trabalho melhor”. Já o refúgio, regulado por inúmeros documentos nacionais e internacionais, ocorre por grave violação de direitos humanos, ameaça ou violação da integridade física, da liberdade ou morte de pessoas que sofrem algum tipo de perseguição por opinião política, gênero, religião, etnia, origem, grupo social.

Segundo ela, “o refúgio é uma obrigação do Estado e não está no âmbito da discricionariedade do Estado aceitar ou não”. Ela reitera, ainda, que “se você vê uma pessoa correndo risco de vida e omite socorro, é crime; então, analogamente, o Estado que recusa o pedido de uma solicitação de refúgio, estaria omitindo socorro e, portanto, estaria violando uma ordem internacional”. A partir disso, entende-se que o Estado tem a obrigação de abrigar todos aqueles que pedem o refúgio.

Sobre a nova medida, ela comenta que a mudança é “uma aberração jurídica”, já que é uma nota técnica proveniente do gabinete do coordenador do Departamento de Imigração e que revoga o Tratado Internacional, a Lei de Refúgio e a Lei de Imigração. Para esclarecer, o Departamento de Imigração é submetido à Secretaria Nacional de Justiça, o que quer dizer que a Secretaria deve aprovar, primordialmente, qualquer sugestão do Departamento – fato que não ocorreu, nesse caso.

Uma justificativa da mudança é a entrada do Brasil na rota de tráfico de pessoas. Para ela, esse argumento é uma falácia e “a delegacia e o departamento de imigração se tornam cúmplices do traficante, cúmplices do contrabandista, porque muitas vezes a chance de uma vítima de tráfico é justamente ter acesso à Polícia Federal e pedir solicitação de refúgio para que não chegue no destino final”.

Ela defende, ainda, que o pedido de refúgio no país de trânsito é de extrema importância para quebrar o ciclo do tráfico e do contrabando. “Com esse argumento, o Brasil tá falando que nós somos cúmplices desses traficantes, porque a gente vai fazer com que essa pessoa chegue até o destino final, seja escravizada, a gente vai garantir isso, né? Se aqui no Brasil, ela não vai poder solicitar refúgio, ou ela volta para trás, para os braços do traficante, ou ela vai para frente, para os braços de quem vai explorar elas sexualmente ou em uma relação de trabalho”, completa.

Desde 1920, existem normativas migratórias do Brasil, que são orientadas por um paradigma securitista de proteção do Estado, que ocupa o posto de destinatário de direitos, e repudia o estrangeiro e o coloca como ameaça. No entanto, a Constituição de 1988, no artigo 5º, afirma que os imigrantes tem os mesmos direitos dos nacionais e que não pode haver discriminação jurídica como existia no Estatudo do Estrangeiro. A partir daí, em 2017, ocorreu um avanço, por conta do trabalho de constitucionalistas e pesquisadores, que é a Lei 13.445, cujo princípio é de Direitos Humanos, o que inverte o destinatário, que passa a ser a proteção ao imigrante e ao refugiado.

A professora comenta que, desde 2019, suspeita de uma lógica de externalização de fronteiras que é confirmada pela nota do Departamento de Imigração. Ela explica que “a externalização de fronteiras é uma possibilidade jurídica dada pela convenção de refúgio” e que é uma cartada utilizada pelos Estados Unidos, veladamente, com o México. Nesse contexto, “o México tem a obrigação de interromper o fluxo migratório” para os Estados Unidos.

Fica claro que Cynthia é contra a nova medida e diz que não vê prós nem para o Estado Brasileiro, muito menos para o imigrante. Ela afirma, ainda, que “a portaria é extremamente restritiva aos direitos fundamentais da pessoa” e que o racismo e a xenofobia são institucionais e estruturais no Brasil, complementando que “não adianta você ter um governo democrático, com uma lei democrática, quando as nossas estruturas de ponta são xenofóbicas e racistas”.

Além disso, ela acredita que os brasileiros veem os imigrantes como uma ameaça. “Ameaça para a saúde pública, ameaça para ao trabalho do brasileiro, ameaça à população brasileira, ele é um potencial criminoso”. Tudo isso cria um estereótipo negativo de pessoas que estão com alto grau de risco de vulnerabilidade socioeconômica, o que dificulta a integração delas em qualquer lugar do mundo.

Cynthia pontua que a portaria suja a imagem do Brasil no âmbito internacional, já que o país recebe pouquíssimos imigrantes. Segundo ela, 0,4% da população brasileira é composta por estrangeiros e imigrantes livres.

Percebe-se que o buraco é mais embaixo, já que “os Direitos Humanos não tem nenhuma norma que proteja essas pessoas”, o que as deixa, absolutamente, sem qualquer proteção jurídica e com uma restrição gigante de acesso à Justiça. Ela relata que alguns refugiados “tem até medo de acessar a Justiça”. No GEMTI, ela teve que notificar que ia entrar com um mandado de segurança contra a Polícia Federal, e a pessoa responder: “não, pelo amor de Deus, de jeito nenhum. Não faz isso, não quero voltar para a Polícia Federal”. Isso comprova o medo de acionar o sistema que lhes garantiria acesso a alguns direitos e que a situação é de extrema vulnerabilidade, discriminação e xenofobia.

Cabe, portanto, uma reflexão do que deve ser defendido enquanto sociedade e democracia, no sentido de abrir o leque das possibilidades e dos direitos para o maior número de pessoas possíveis, a fim de buscar uma maior equidade e respeito entre as pessoas que habitam o Brasil.

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