Bioma nordestino exclusivo do Brasil enfrenta, quase sozinho, as mudanças climáticas que o assolam


Por Giovanna da Silva Araújo

No dia 24 de outubro, o Brasil registrou 1.273 focos de incêndios, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Deste total, 25,3% ficaram concentrados na Caatinga. No mês de outubro, o país acumulou mais de 25 mil focos de incêndio e setembro foi, até então, o mês com mais ocorrências de incêndios em 2024, onde a Caatinga representou 8,0% dos focos registrados.

O aumento de queimadas que todo o território brasileiro está enfrentando em 2024 é resultado de alguns fenômenos climáticos e antrópicos (de origem humana), como a seca histórica pela qual o país está passando, com a pior estiagem em 44 anos, segundo o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais).

“A associação entre um clima que, com as mudanças climáticas, vai se tornar mais seco, somado à ação criminosa de pessoas queimando a vegetação, vão, infelizmente, aumentar o número de queimadas no Brasil todo”, comenta o professor Marcelo Freire Moro, da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Neste cenário, a Caatinga raramente aparece nas notícias dos grandes veículos de comunicação, onde o destaque vai para a Amazônia e o Pantanal. Aparentemente, o semiárido é relevante apenas nas apostilas das escolas e, no máximo, no vestibular. Ao sair da sala de aula, cai no esquecimento do imaginário brasileiro. Dessa forma, o sertão, sua fauna, flora e comunidade sofrem com os impactos da exploração, degradação e desmatamento, que se aproveitam da invisibilidade da região assim que ultrapassada a fronteira do Nordeste.

Desmatamento e queimada eliminam a vegetação nativa da Caatinga. Fonte: https://revistapesquisa.fapesp.br/acao-humana-transformou-89-da-caatinga/

O bioma da Caatinga é exclusivamente brasileiro e, apesar dos estereótipos que o cercam, ele abriga uma biodiversidade abundante e florestas de grande porte. Marcelo Moro pontua que “hoje já temos mais de três mil espécies de plantas já documentadas para a Caatinga, das quais mais de quinhentas são endêmicas. São espécies de plantas e várias espécies de animais que só existem no nosso planeta dentro do domínio da Caatinga”. Porém, diante das mudanças climáticas já observadas em vários países e das atividades antrópicas exploratórias, o sertão está perdendo sua riqueza.

A desertificação é um dos principais fenômenos atuantes na degradação da Caatinga há muitos anos, caracterizada pelo desgaste excessivo do solo, contribuindo para a perda de vegetação e, consequentemente, da fauna local. Marília Nascimento, Coordenadora de Programas Socioambientais da Associação Caatinga explica que “o principal fator que acelera esse processo é o desmatamento, que já chega a 47% da área total do bioma da Caatinga. Dentre as principais causas de desmatamento estão a expansão da agropecuária e a introdução de monoculturas”.

Um novo fenômeno que vem sendo observado é a aridificação, que é o processo de aumento da aridez na Caatinga causada principalmente pelo aquecimento global, mas que também há contribuição de queimadas antrópicas e demais atividades econômicas. “O aumento das temperaturas na Caatinga influencia diretamente na incidência de incêndios e até mesmo no controle. Com temperaturas elevadas, o fogo se alastra com mais rapidez e os focos de incêndio podem ressurgir mesmo após o controle”, explica Marília.

Moro ainda acrescenta que “isso é um problema, porque a fauna e a flora não são adaptadas ao clima árido, árido é o clima dos desertos. A Caatinga não é um deserto, ela é uma floresta adaptada ao clima semiárido. No cenário atual, já estamos sofrendo os efeitos das mudanças climáticas e, hoje, já há áreas da Caatinga que estão apresentando o clima árido”.

Mapa mostra primeira região árida identificada no Brasil (2024).
Fonte: https://www.gov.br/cemaden/pt-br/assuntos/noticias-cemaden/estudo-do-cemaden-e-do-inpe-identifica-pela-primeira-vez-a-ocorrencia-de-uma-regiao-arida-no-pais


Negligenciada, a Caatinga carece de ações governamentais eficientes em sua conservação, facilitando para aqueles que exploram os recursos naturais do bioma. O professor Marcelo Moro comenta sobre as poucas ações de proteção ao sertão. “Hoje a gente só tem cerca de 8% da Caatinga com alguma cobertura de proteção, mas a maioria são áreas protegidas do tipo APA (Área de Proteção Ambiental), que é do menor grau de proteção; e cerca de 1,3% da Caatinga é coberta por áreas de proteção do tipo Integral, que são aquelas com maior grau de proteção como os Parques Nacionais”.

Um movimento que tem buscado viabilizar novas estratégias e planos de preservação eficazes da Caatinga é a reivindicação do Cerrado e da Caatinga como Patrimônios Nacionais pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Sobre a PEC 504, que propõe reconhecer os biomas como patrimônios, Marília pontua que “é importante a aprovação [da PEC 504] que tramita desde o ano de 2010. A aprovação desta emenda constitucional é capaz de trazer visibilidade e potencializar os investimentos para proteção destes biomas”.

Enquanto não há a aprovação da PEC, comunidades sertanejas começaram a se movimentar nos últimos anos com planos de conservação e proteção ao semiárido. Denominada recaatingamento, a ação promovida por essas comunidades chamadas de Fundo e Fecho de Pasto em parceria com o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), visa “recuperar áreas degradadas e preservar o que já existe”, como explica Marila dos Santos Rodrigues, técnica agrícola da Comunidade Tradicional de Fundo de Pasto “Fartura”, na Bahia. “O recaatingamento tem cinco linhas de ações: a conservação da Caatinga, a recomposição, educação contextualizada, melhoria de renda e políticas públicas”, complementa a técnica.

Joaquim Laranjeira, estudante na Universidade Estadual da Bahia, UNEB, e membro da Comunidade Tradicional de Fundo de Pasto “Muambo”, sintetiza a atuação das comunidades no recaatingamento em “escolha da área e isolamento, preparo do solo, construção de viveiros, produção e plantio de mudas e dentre outras ações que [as comunidades] acharem necessárias para melhor recuperação da área”.

A prática do recaatingamento é, até então, a principal estratégia de conservação e recuperação do sertão brasileiro, elaborada e viabilizada pelos próprios sertanejos. Marila, de “Fartura”, evidencia a efetividade da ação: “Lá na minha comunidade desenvolvemos o projeto de recaatingamento desde 2010, então hoje a área lá já se encontra bem recuperada. Não era uma área totalmente degradada, o objetivo era conservar o que já tinha e recompor algumas plantas que já não existiam mais”.

Para Marília Nascimento, da Associação Caatinga, as perspectivas para o futuro do bioma podem ser promissoras. “Nós, caatingueiros, estamos há anos construindo nossas soluções práticas para convivência com o semiárido e, nesse sentido, temos muito conhecimento tradicional a ser compartilhado com outras regiões que, atualmente, enfrentam a seca devido às mudanças climáticas”.

Porém, as atividades de Fundo e Fecho de Pasto e das Instituições em prol do semiárido podem não ser o suficiente, sozinhas, para garantir a preservação da Caatinga a longo prazo. São necessárias novas estratégias nacionais eficientes neste processo. A PEC 504, que se mantém estagnada desde 2010, é uma das principais ferramentas que o governo tem em mãos nessa luta.

“Não basta só as comunidades preservarem, é notório que necessita de ações conjuntas e se não houver isso surge o que já se percebe na nossa Caatinga, como por exemplo a desertificação, a escassez de água, aumento das temperaturas… E mesmo com esses sérios problemas ainda surgem diversos empreendimentos que exploram os recursos naturais de forma desenfreada, além de causar desmatamento e degradação de forma extensiva”, complementa Joaquim.

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