Pesquisas apontam que o número de apostas realizadas por beneficiários do Bolsa Família chegou a 3 bilhões de reais em agosto de 2024. Entenda de que maneira esse fenômeno tem crescido no Brasil
Por Maria Eduarda Rocha
Já imaginou dobrar seu salário em um piscar de olhos? Receber o dinheiro de uma semana de trabalho em apenas um clique? Transformar cinco reais em um valor suficiente para um lanche com os amigos? Ou 100 reais no dinheiro para o aluguel no fim do mês? Parece convidativo, não é? E muitos brasileiros nos últimos meses têm se deixado levar por essa tentação por conta dos jogos de aposta online, popularmente conhecidos como bets.
Mesmo com tantos benefícios aparentes, nada é garantido. Os apostadores podem ganhar muito dinheiro, como também perder tudo o que tinham e sair no prejuízo.
Existem numerosas opções de jogos online, alguns ainda ilegais, outros, em sua maioria de apostas esportivas, já legalizados no Brasil. Justamente por conta dessa regularização, que existe desde 2018 com a Lei 13.756/2018 e vem se intensificando desde 2023 com o surgimento dos cassinos online e a nova regulamentação na Lei 14.790/2023, o Banco Central (BC) tem feito pesquisas do quanto a população tem gasto nesses sites.
A pesquisa do BC, publicada em setembro e referente a agosto de 2024, mostrou um número que assusta alguns políticos, economistas e sociólogos. Cerca de cinco milhões de beneficiários do Bolsa Família enviaram R$3 bilhões às bets via pix no período de 30 dias. Esse dado gerou questionamentos em uns e espanto em outros.
Após a divulgação dessa pesquisa, o Governo Federal garantiu estar analisando formas de proibir que o benefício do Bolsa Família fosse usado nas bets. No dia 30 de setembro, o deputado Áureo Ribeiro apresentou à Câmara uma emenda ao projeto de lei 3.626/2023 que regulariza os jogos de aposta, a qual propunha a restrição de gastos nas bets por quem está no CadÚnico ou recebe Benefício de Prestação Continuada (BPC).
A emenda foi vetada, mas o ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Wellington Dias, declarou no dia 17 de outubro, após uma reunião com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que os cartões do Bolsa Família serão bloqueados para o pagamento de jogos e apostas online.
Para entender melhor todo esse contexto, o jornal Contexto procurou diferentes pontos de vista, especificamente sobre o atual cenário com apostadores de baixa renda.
Aos olhos de um apostador
Kaíke Piauhy Araújo dos Reis é operador de loja e tem 21 anos. Por influência do pai, aposta desde que começou a ter seu próprio dinheiro. “Comecei muito cedo. Via que meu pai perdia mais do que ganhava, mas, quando ganhava, ficava feliz, então… Quando comecei a ter dinheiro comecei a apostar”, conta Kaíke entre sorrisos.
O jovem relata que arrisca com mais frequência em partidas de futebol, e que os jogos de cassino são mais para brincar. “Tigrinho, Dados 77, eu jogo mais para me divertir, então aposto um pouco mais de 20 reais. Já nos jogos esportivos costumo jogar um valor mais alto”, relata.
Embora Kaíke se divirta apostando, não recomenda os jogos. “Suga seu dinheiro todo se você não for uma pessoa com autocontrole”, declara o jovem, que depois afirma não se descontrolar. “Tem a parte da emoção, a graça de jogar. Mas, depois que você perde, fica frustrado. Mas eu sei a hora de parar, tem gente que pára só quando acaba o dinheiro, aí é outra situação, mais delicada”, assegura o jogador, um pouco inquieto.
Em relação aos beneficiários do Bolsa Família, o jovem diz que cada um deve ter a responsabilidade de apostar com seu dinheiro. “Esse valor do benefício é algo para você sobreviver, não que você devia estar jogando”, comenta Kaíke.
Além disso, o apostador opina que jogos, como os dos cassinos online, poderiam ser banidos do Brasil, mas que os esportivos são diferentes e menos viciantes.
Kaíke conta ao jornal Contexto uma experiência feliz. “Eu e meu pai fizemos 1300 reais com aposta no jogo do Corinthians. Jogamos 200 e voltou 1300”, relata o jovem triunfante, que, posteriormente, explica que o lucro depende do desenvolvimento do jogo, mas, independente de qualquer coisa, ele e o pai sempre jogam pelo coração e apostam no Corinthians.
Até esse momento, é possível observar que a expectativa da vitória está sempre presente. Até o apito final, há possibilidade de que seu time do coração vença a partida e, no caso do Kaíke e do pai, lhe gere uma renda extra. De uma forma ou de outra, tudo é movido pela esperança de que, no fim, a felicidade chegará.

Aos olhos de uma economista
Edineide Maria de Oliveira é economista, mestre em Administração e Ciências da Educação, doutora em Ciências Sociais com foco em emprego e desemprego na economia do trabalho, e hoje atua como professora de nível superior.
“Eu vou me basear um pouco no relatório do Banco Central, como sou economista, gosto de analisar esses dados”, introduz Edineide, que posteriormente informa que os beneficiários do Bolsa Família enviaram via pix uma grande quantia em dinheiro. “Foram R$3 bilhões em agosto. Em torno de cinco milhões de pessoas recebem o Bolsa Família, entre os apostadores, quatro milhões são chefes de família, ou seja, aqueles que recebem diretamente essa renda do governo, e só eles enviaram R$2 bilhões, ou seja, 67% do volume que foi destinado às apostas”, analisa a professora.
Edineide Maria mostra certa preocupação em relação a esses dados, pois o dinheiro destinado a bens primários, como alimentação, está sendo perdido nas bets. “Eu acho que muito se deve essa questão da falta de educação, do controle da renda, da escolaridade, de promover conhecimento e gestão financeira vai repercutir bem mais para frente”, opina a professora.
A especialista também acredita que a dificuldade do acesso ao ensino e ao conhecimento são os principais fatores que contribuem para que as pessoas se iludam com um dinheiro fácil. “Fazer com que as famílias, principalmente aquelas que não tem conhecimento, queiram dinheiro rápido e fácil, fiquem naquela ilusão de que vão ‘buscar a sorte’… Isso acaba repercutindo não só na família, mas também no sistema econômico como um todo e traz vários outros tipos de problemas” aponta a economista em tom reflexivo.
O principal fator citado por Edineide vai para além do vício, que é tão citado. De acordo com a professora, quando as pessoas perdem dinheiro, são afetadas psicologicamente, o que desencadeia vários quadros de saúde física e mental, que podem acabar contribuindo para o aumento da demanda do SUS e, até mesmo, da população em situação de rua. Assim, a questão se torna “uma bola de neve” e um problema não apenas para a família do apostador, mas para o governo também.
Em contrapartida, a economista aponta que existem pessoas se beneficiando com a situação, como os donos das empresas de bets e, claro, os bancos. “Por que isso não acaba? A gente percebe que existe uma força muito grande para o lucro. Alguém acaba ganhando com a pobreza. E isso impede que o Brasil avance, que invista em educação, em conhecimento. Então, infelizmente, a gente sabe que alguém está ganhando e esse alguém tem um poder muito forte”, afirma Edineide um pouco desesperançosa.
Ao ser questionada sobre uma solução, a economista diz que não acredita ser possível acabar com as bets. “É muito difícil. É como a Mega-Sena. Você tem vários tipos que são legalizados via Caixa Econômica Federal, mas também existem outros, como o jogo do bicho, que mesmo ilegal, não acaba”, observa a professora. Edineide acredita que a melhor solução a curto prazo seja inviabilizar as apostas, como o Governo já tem pensado em fazer, proibindo pagamento com Bolsa Família, cartão de crédito, e na opinião da economista, até mesmo dificultar a transação via pix.
Mas a professora alerta, ainda, que a longo prazo a solução seria o investimento em educação e na geração de emprego. “Quando falamos de economia, estamos sofrendo muito com a questão da falta de investimento, na educação e na indústria, que vá proporcionar uma qualidade de vida”, explica Edineide, que posteriormente relata que os jovens de hoje não estão sendo preparados para o mercado de trabalho do futuro e que percebe isso no dia a dia, na sala de aula. Segundo a professora, aqueles que escrevem, falam, se relacionam bem já estão colocados no mercado, mas é preciso capacitar os que ainda não conseguiram nem o primeiro emprego.
De acordo com a análise da economista, as apostas surgem para muitos como uma esperança de que se possa, de algum modo, alcançar sucesso financeiro, já que, principalmente a população de baixa renda, não enxerga mais a educação e o emprego como uma alternativa, visto que o acesso que lhes é apresentado é escasso ou parece ser inalcançável.
Aos olhos de uma socióloga
“Esses mais de 200 sites de bets nada mais são que alguns grupos de interesse que se valem desse processo de uma população vulnerabilizada, fragilizada, que acreditam em uma sorte fácil e uma mudança de vida midiática, como da Deolane Bezerra, do Gusttavo Lima e uma série de outros influencers que fazem parecer muito fácil”, afirma Márcia Lopes Reis, professora na Unesp de Bauru, doutora em Sociologia e pós-doutora em políticas públicas de educação.
Márcia explica que famílias de baixa renda, como as que recebem o Bolsa Família, estão sacrificando o dinheiro destinado para sobrevivência, em uma esperança maquiada como uma forma tentadora de enriquecimento. Essas pessoas, em sua maioria jovens adultos entre os 20 e 35 anos, apresentam um comportamento de vício. “Esses jovens adultos estão sendo negligenciados pelo Ministério da Educação, da Saúde e da Cultura. Por um outro lado, até pelo Ministério da Fazenda, que não poderia permitir que esses sites tivessem pagamentos feitos por pix, cartão de crédito ou um dinheiro como esse do Bolsa Família, que tem outra finalidade”, aponta Márcia.
A socióloga aponta que, em tese, a escola pública deveria fazer um papel de “elevador social” e criar consciência nos jovens da sociedade de que “não se dorme pobre e acorda rico”, isso só existiria no mundo das bets. Para a especialista, se a escola não dá a oportunidade de ascensão social e de mudar o cotidiano dessas pessoas de baixa renda, então elas se tornam presas fáceis e vulneráveis o suficiente para realizar esse tipo de prática, como as apostas.
Márcia lembra ainda: “o que a gente tá vivendo agora é fruto das escolhas de ontem, seja individualmente ou coletivamente. E aquilo que vamos viver amanhã é fruto das escolhas que fizemos hoje”. A professora diz isso na intenção de relembrar as políticas públicas de educação, ou melhor, a falta dessas políticas, que fizeram com que medidas compensatórias de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, seguissem de forma permanente.
Na visão da socióloga, há um interesse claro na falta de investimento em políticas públicas: quanto menos conhecimento a população tem, mais facilmente cairá em sistemas como esses, das bets. A professora complementa ainda que as políticas públicas de educação, cultura, entretenimento, uso do ócio e lazer estão delegadas a quase nada. “É uma diversão de livre e fácil acesso, apresentada a essa população através da internet, que, hoje em dia, encontra-se facilmente em qualquer lugar”, destaca.
Márcia conta, em tom descontraído, que costuma dizer aos seus alunos que quem nasce sem grandes condições financeiras precisa estudar, ou então, casar com alguém de classe social maior. Passada a brincadeira, a doutora afirma que, atualmente, pode-se dizer que a aposta é a primeira esperança para quem “nasceu pobre”, seguida pelo estudo e casamento, respectivamente. “A escola não está dando a prometida mobilidade social”, observa Márcia, justificando a afirmativa de que, para muitos, a aposta parece mais vantajosa.
Em relação ao que deve ser feito, acredita que, a curto prazo, a proibição das apostas seja a melhor alternativa, mas, para que situações como essa não sejam recorrentes, deve-se promover campanhas educativas e ampliar o investimento na educação pública de qualidade.
Após conhecer três pontos de vista diferentes em relação às bets e os beneficiários do Bolsa Família, percebe-se que Kaike, o apostador, enxerga as bets como uma diversão, uma forma de dar mais emoção às vivências do cotidiano, como assistir uma partida de futebol, desde que se jogue com consciência. Já Edineide e Márcia acreditam que a crescente popularidade das bets entre os cidadãos de baixa renda seja consequência da falta de investimento na educação, que gera uma população que não acredita no potencial dos estudos, que agora busca esperança nos jogos de apostas.
E você? O que acha? O uso das bets pela população de baixa renda é diversão, irresponsabilidade ou um fôlego de esperança?
