Mulheres que tem como lazer os jogos eletrônicos também vivenciam, no meio digital, o assédio, a misoginia e a sensação de não pertencimento sentidos na vida real.

Por Lana Novais

“Mas por que ela tá brincando com um caminhão? Ela não é um menino”, recorda Valquiria Menezes, 25, streamer e estudante de Design ao relatar um pouco sobre sua infância e como ela sentiu desde pequena os estereótipos designados pela sociedade para o que deveria ser brincadeira de menina, e o que era de menino.

Valquiria conta que durante sua infância sempre foi rodeada pelos primos e os amigos, e sempre podia brincar daquilo que quisesse, mas sua grande paixão era pela franquia Nintendo e os dispositivos console. Porém, foi em setembro de 2020, que seu contato com os jogos passou a mudar, pois foi nessa época que ela conseguiu adquirir seu primeiro computador.

Ali, ela se sentiu diante de um novo cenário, e passou a vivenciar do zero o que era jogar com o teclado e o mouse. Em três meses, Valquiria conseguiu entrar em um time feminino tier 3, de Counter-Strike: Global Offensive, jogo conhecido pelas siglas CS GO. Ela conta que essa facilidade se deu pelo tamanho do cenário feminino na época, que ainda estava em desenvolvimento. Incentivada pelas colegas de equipe e pelos amigos, ela passou a fazer transmissões ao vivo na plataforma Twitch no fim daquele mesmo ano.

Valquiria Menezes, 25, streamer e estudante de Design

O ataque de Bot´s

Ela acabou gostando de realizar as chamadas streams e começou a investir na atividade. Porém, foi em uma dessas transmissões que ela passou por um evento marcante que mostrou o quanto a internet pode ser cruel. Valquiria conta que em um determinado dia, ela foi alvo de um ataque de bot´s desencadeado por cerca de três ou quatro adolescentes, que criaram diferentes contas na plataforma, associando o seu nome a termos pejorativos. Ela diz que as expressões utilizadas por eles eram extremamente ofensivas, e que nesse dia ela precisou encerrar a transmissão chorando. “Por que, né? Por que aquelas três ou quatro pessoas, adolescentes, resolveram tirar o tempo deles para atacar uma mulher que tá só jogando um jogo, sabe? Aquele dia foi muito difícil pra mim”. Em outro momento, a streamer relata que após ser vítima de ataques machistas dentro do jogo, se sentiu tomada pelo sentimento de frustração e acabou por socar e quebrar a tela do próprio monitor.

Questionada do porquê certas pessoas agirem de maneira agressiva na internet, Larissa Alhadef, psicóloga formada pela Universidade Federal do Ceará e mestre em psicologia pela Universidade do Minho, em Portugal, afirma que qualquer fator contextual pode afetar o comportamento de uma pessoa.

“Quando se fala sobre a internet, eu acredito que o principal fator que afeta o comportamento das pessoas é a ideia do anonimato e a sensação de que aquela pessoa que você está interagindo, está muito distante”, explica.

Larissa Alhadef – psicóloga e líder técnica da Psicomporte

Após um período, Valquiria comenta que passou a jogar Valorant, jogo de FPS – First Person Shooter, em português, Atirador em Primeira Pessoa, lançado em junho de 2020 pela empresa Riot Games. Ela conta que por ser um lançamento recente, ela começou a praticar sozinha, e por conta disso acabava tendo que jogar com desconhecidos na mesma equipe. “Foi ali que eu entendi que homem não aceita mulher jogando, principalmente se for do mesmo nível que ele, até porque se eu estou ali é porque eu sou”.

Ela explica que as ofensas seguem um mesmo padrão, são em sua maioria de cunho sexual, associadas a gordofobia, ou ligadas a tarefas domésticas, e que pioram quando seu desempenho não está sendo muito bom, se ela comete algum erro, ou quando ela sugere algo dentro de jogo.

A streamer complementa dizendo que isso acaba por gerar uma pressão muito grande, como se precisasse provar que merece estar onde está. “Eles não aceitam que uma mulher possa ocupar o mesmo lugar que eles, um lugar que eles sempre ocuparam. Muitos acreditam que mulheres são inferiores e que deveriam estar jogando joguinho de Barbie, e tudo bem, também, as mulheres jogarem joguinho de Barbie, mas existem mulheres que querem jogar jogo de tiro também, e qual é o problema?”, questiona.

Diante desse contexto, a psicóloga Larissa explica que os ataques misóginos e abusivos que ocorrem na internet não surgem de uma identificação pessoal de gênero, do fato da pessoa em questão se identificar com o gênero feminino, mas sim da visão que o outro possui da feminilidade.

“A percepção social aos símbolos e aos signos de feminilidade, tudo que está atrelado ao ser mulher, são vistos pelos outros, muitas vezes até pelas próprias mulheres, como uma ideia de que a pessoa ali, a mulher, não consegue se defender, uma ideia de submissividade, desproteção”.

Com o passar do tempo, Valquiria conta que precisou se moldar para lidar melhor com essas questões. Além de influenciar em quais personagens ela iria jogar, por alguns deles serem associados ao público feminino por serem considerados “fáceis”, ela também comenta que deixou de ser ela mesma dentro do jogo, abandonando um certo entusiasmo e carisma que ela tinha com os companheiros de equipe, com receio de receber alguma ofensa.

Hoje em dia ela diz que por conta de já estar há algum tempo jogando e ter chegado em um nível considerado avançado dentro do jogo, ela não sofre muito esses ataques, mas que, eventualmente, isso ainda acontece. Ela menciona que a terapia a ajudou muito, e que atualmente as pessoas que estão assistindo sua transmissão ao vivo a auxiliam a lidar com esses momentos de outra forma, tentando tornar a situação cômica.

Mas Larissa complementa dizendo que qualquer grupo social que sofre agressões visíveis ou invisíveis irá sofrer perdas no sentido de criar uma sensação de desamparo, humilhação e inferiorização. “Por consequência, isso vai afetar as formas de como aquela pessoa reage à própria vida, e a forma como ela lida com as próprias necessidades e experiências em geral”.

Experiências da Vida Real X Experiências Online

Questionada se há diferença entre passar por situações machistas e misóginas na vida real e passar por elas na internet, Valquiria diz perceber que na internet as pessoas se sentem livres para falar o que quiserem, sem medo. Além disso, ela diz notar uma diferença na faixa etária de quem realiza esses ataques. “Online geralmente são caras mais novos que não tem coragem de fazer isso pessoalmente, que muitas vezes tem namorada, gostam da mãe, tem irmã, tem amigas, só que na internet eles se irritam, talvez por nós estarmos ali ocupando o mesmo espaço que eles”.

Como exemplo, Valquiria comenta que em um vídeo publicado recentemente em suas redes sociais, na qual ela expunha uma opinião sobre estilos de armas dentro do jogo, ela precisou bloquear cerca de 50 homens, e recebeu comentários como “Tá autorizado já bater nela?”, “Ela não tem nenhuma louça para lavar né?” ou “É por isso que mulher não joga”. Mesmo assim, Valquiria complementa dizendo que passar por esses ataques presencialmente e na internet causa sentimentos distintos, mas que ambos são extremamente violentos.

Valquiria finaliza a entrevista dizendo que o que a motiva a continuar é a comunidade que ela vem construindo com seus seguidores, que curiosamente em sua maioria é formada por homens. “A gente se acolhe, joga junto, acredito que se fosse só pelo jogo, eu acho que eu já teria desistido, ou jogaria muito menos”. Além de streamer, Valquiria também é estudante de Design, e em seu Trabalho de Conclusão de Curso ela vem desenvolvendo um estudo na área do cenário inclusivo. Para ela, é necessário explicar a necessidade de um cenário como esse, que busque incluir diferentes minorias que não cresceram tendo acesso a jogos, mas que também se interessam por esse tema.


Ao ser solicitado um conselho de como lidar com situações de violência, a psicóloga Larissa diz que no caso da internet, tudo vai depender de quem agride e de quem está sendo agredido, e quais os mecanismos de enfrentamento que aquela pessoa possui para lidar com a dor emocional que essas agressões podem gerar. “Eu, como psicóloga, quando alguém vem cometer uma agressão, ou um discurso de ódio comigo, eu me faço de doida, essa é a minha resposta, porque eu sinto que levar pelo caminho do humor no sentido de fazer pouco daquela situação, me ajuda a me sentir melhor, mas outras pessoas vão ter outras respostas que vão ser melhores pra elas, porque cada pessoa tem as suas necessidades emocionais que ajudam elas a lidar melhor com as coisas difíceis da vida, mas claro, tudo vai depender do tamanho daquela agressão”.

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