Por Giulia Morais
Em 2022, 30 milhões de mulheres foram assediadas sexualmente segundo o Datafolha e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)

“Ficamos com medo do descrédito, dos julgamentos, como se o que aconteceu fosse culpa nossa, por um tempo sentimos isso”. Assim relatou Anielle Franco,,ministra da Igualdade Racial do atual governo, para o canal da CNN Brasil, ao expor as importunações e assédios sexuais que sofreu por parte do ex-ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida. Além dela, mais de 10 mulheres denunciaram os assédios contra ele, por meio da organização Me Too Brasil.

O caso que veio a público em 05 de setembro trouxe à tona a discussão sobre as múltiplas formas de violência contra a mulher e os obstáculos enfrentados por elas no processo da denúncia. As declarações de Anielle revelam também um padrão existente no Brasil: mesmo entre integrantes de altos cargos governamentais, o apoio e a amplificação das vozes femininas ainda é suprimido. A ministra afirmou ainda que, apesar de relatar para membros do governo ter sido alvo de assédios, demorou a ser validada, comprovando a difícil realidade que milhares de mulheres vivem: a descredibilização de seus relatos.

De acordo com o estudo “Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil”, realizado pelo Datafolha e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 30 milhões de mulheres foram assediadas sexualmente no ano de 2022. Além dessa pesquisa, em 2023, o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública registrou um crime de estupro a cada seis minutos, conforme os registros policiais.

Para a Me Too Brasil, organização que atua no apoio a vítimas de violência, “a denúncia é um passo crucial para responsabilizar o agressor”, isso inclui desde relatar assédios (virtuais e presenciais), importunação sexual, violências domésticas, psicológicas, ameaças, perseguições e estupros.

Entretanto, existe ainda uma parcela da violência que não entra nas estatísticas oficiais, seja pela “impunidade, desconfiança e falta de comprometimento nas instituições”, pela “burocracia e dificuldade do acesso a serviços”, por fatores psicológicos como “medo,vergonha e culpa” ou ainda pela “falta de apoio e descaso da sociedade”. As respostas anteriores são as mais recorrentes entre mais de 60 pessoas que foram questionadas pela reportagem sobre “o que desmotiva a vítima de realizar a denúncia?”.

Também foram entrevistadas representantes que trabalham na área da defesa das mulheres e explicam sobre esse fenômeno nas diversas violências contra mulher. Sendo uma das mais recorrentes:

A Violência Doméstica

Ana Silvia Passberg de Amorim, de 59 anos, é presidente do Conselho dos Direitos da Mulher de Praia Grande e conselheira da Condição Feminina do Estado de São Paulo. À frente da ONG Defesa e Cidadania da Mulher (DCM), há 19 anos atua no apoio a vítimas de violência doméstica e abuso sexual.

Ela recorda que, antes das leis específicas, as mulheres enfrentavam grandes dificuldades ao buscar justiça. “Quando tinha-se coragem de registrar um boletim de ocorrência, era a palavra dela contra a dele, e a palavra do homem sempre era predominante”, relembra..

Com a sanção da Lei Maria da Penha em 2006, esse cenário começa a mudar. Sílvia declara que “a legislação assegura à vítima o direito de registrar a denúncia, realizar exame de corpo de delito e obter medidas protetivas”, como o afastamento do agressor do lar. Segundo a fundadora, a lei tornou possível a prisão do criminoso em flagrante, sem possibilidade de fiança e explica que isso evita a vítima de ser coagida a retirar a denúncia dias depois, porque “o nome do agressor fica registrado”.

A Lei Maria da Penha, de nº 11.340/2006, reconhece a violência doméstica como crime e institui mecanismos para prevenir, punir e combater a agressão contra a mulher. Para Ana Silvia, que também fundou a DCM, essa legislação foi essencial para a defesa dos direitos das mulheres, pois “é crucial para fortalecer essa luta”. Foi ainda “a primeira lei que realmente dá direito à mulher, sendo a terceira lei mais forte do mundo em proteção feminina”, afirma ela.

Mesmo com os avanços, ainda há casos em que a proteção não é alcançada. Em uma das histórias que acompanhava, Silvia recorda o caso de uma jovem morta em decorrência de ataques do ex-marido. “Muitas vezes a justiça não chega a tempo para ajudar”. Ela explica que, por vezes, é nesse lapso entre o pedido da medida protetiva e a análise da concessão que a mulher sofre uma nova violência. E, neste ponto, outro desafio surge: o tempo da violência ser diferente ao da Justiça.

Ela também observa um perfil comum entre as vítimas de violência doméstica: em sua maioria, mulheres de classe média baixa, que, pela falta de condições financeiras, enfrentam maiores dificuldades e estão mais vulneráveis, junto com suas famílias. A violência, no entanto, atinge todas as classes sociais. “A brutalidade também é observada em classes mais altas, mas esses casos raramente vêm a público”, esclarece.

Para a conselheira, além do amparo jurídico, o apoio psicológico é fundamental. Ela acredita que profissionais de psicologia são capazes de “vivenciar com a vítima o que está acontecendo e fortalecê-la”. Na DCM, Ong em que coordena, acontece palestras e atividades de conscientização, entre elas o grupo Flor de Lótus, que se reúne duas vezes por mês e oferece um espaço de acolhimento e empoderamento para as participantes. “Elas interagem e mostram umas às outras que sempre há um caminho a seguir”, conta.

Entretanto, o processo da denúncia ainda é repleto de obstáculos. “Ser ouvida e ter um boletim de ocorrência que descreva toda a situação” são algumas das dificuldades,como destaca a fundadora. Ela percebe ainda que a continuidade nas ações judiciais é incerta e que, em casos de assédio, a palavra da vítima frequentemente não basta, sendo “necessário provar por A+B”. Por isso, orienta as vítimas a gravarem evidências quando for possível, para que possam contar com “provas concretas” no momento da denúncia.

A gravidade da violência contra a mulher, em suas diversas formas, fica evidente nos dados sobre o acionamento da Polícia Militar e o registro de medidas protetivas no Poder Judiciário. Em 2023, o serviço de emergência 190 da Polícia Militar recebeu 848.036 chamadas relacionadas a casos de violência doméstica. No mesmo ano, 663.704 novos processos foram abertos na Justiça para pedidos de medidas protetivas e 258.941 mulheres foram vítimas de agressão no contexto familiar. Os números são do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Integrantes da Ong DCM (Foto: Redes sociais)

Ana Silvia Passberg de Amorim, fundadora da ONG DCM

O assédio sexual no ambiente corporativo

Silvia Lopes Fiel, que era assistente social na Ong DCM através de convênio com a Defensoria Pública e Secretaria da Justiça, comenta que “o assédio sexual no ambiente de trabalho é um problema recorrente e complexo”, especialmente pela ausência de provas periciais e testemunhas diretas, tornando o relato das vítimas peça central para investigação e responsabilização dos envolvidos.

Esse tipo de violência ocorre quando o agressor, utilizando sua posição hierárquica ou influência, constrange e humilha a vítima para obter o que deseja, muitas vezes em um contexto onde o medo e o silêncio predominam.

A assistente social afirma que muitas mulheres hesitam em denunciar seus chefes ou superiores, temendo retaliações e a perda do emprego. “Elas têm muito medo de denunciar chefes e patrões”. Ela ressalta ainda que os obstáculos à denúncia vão “desde o medo da demissão e a vergonha” até “o desconhecimento sobre os próprios direitos”.

Outro problema citado por Silvia é a “falta de punição” e a “responsabilização das empresas” nesse processo, visto que os assédios acontecem por “quem está no poder” e, desse modo, se “sente confortável em realizá-lo”.

Esse ciclo de omissão e desinformação, reforçado pela vulnerabilidade econômica e social, dificulta ainda mais a busca por justiça, trazendo percepções que tendem a minimizar e justificar a gravidade da violência praticada, associando a responsabilização à vítima e não ao agressor.

Silvia Lopes, assistente social

Cultura do medo e ciclo da violência

É nessa atmosfera de medo, culpabilização e insegurança que surge o chamado ciclo da violência, marcado pela submissão e controle. Essa fase inicia “sutilmente, sem que a mulher possa se dar conta que está sendo torturada psicologicamente”como explica a psicóloga do Centro de Referência e Apoio à Vítima (CRAVI) Adriana Thomaz.

A situação pode avançar para síndromes do pânico, afastamento da profissão por problemas psiquiátricos ou até mesmo consequências mais graves, que surgem do agressor,”como uma tentativa de feminicídio ou consumar de fato o crime”, informa ela.

Adriana revela também que muitos comportamentos agressivos são normalizados dentro de uma relação,seja ela no trabalho, em momentos de descontração ou no próprio lar, não sendo vistos como um crime. E desse modo, é preciso primeiro que a vítima “compreenda o que está acontecendo com ela”e depois “ser afastada do agressor”.

Além disso, entre as 62 pessoas entrevistadas na pesquisa desta reportagem, 53 responderam já terem sofrido assédio e indicaram que “não percebiam as atitudes”, “associavam a brincadeiras” ou, quando contaram a alguém, “não foram levadas a sério”. Esses exemplos indicam como a cultura da violência contra a mulher é difundida e normalizada na sociedade.

Para a psicóloga, uma das formas de mudar esse cenário é “romper com o ciclo” e realizar o “acolhimento durante e pós processo de violência”. Ela destaca ser essencial esse processo para que a mulher volte a “ser livre e organizar a sua vida de forma saudável e emocionalmente equilibrada”. Para isso, é necessária uma série de orientações e encaminhamentos a serviços especializados.

Pesquisa realizada pelo jornal Contexto revela que 85% das entrevistadas já sofreram assédio

Instituições, Informações e Setores

O combate à violência contra a mulher mobiliza uma ampla rede de instituições e serviços em diferentes áreas, incluindo assistência social, segurança pública e atendimento especializado.

A assistente social Silvia Lopes destaca a importância de instituições governamentais como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), que fornecem apoio e orientação para vítimas de violência doméstica.

Ela pontua que o CRAS atende “a população em geral”, oferecendo assistência e orientação sobre como proceder em situações de violência, enquanto o “Creas é voltado a famílias e pessoas em situação de risco social ou que tiveram seus direitos violados” conclui.

O Brasil conta, inclusive, com Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs), unidades especializadas que atendem mulheres vítimas de violência. Além disso, a Central de Atendimento à Mulher, pelo número 180 recebe denúncias anônimas 24 horas por dia e em situações de emergências, a Polícia Militar pode ser acionada pelo 190. Outro canal disponível é o Disque 100, destinado a denúncias de violações de direitos humanos.

Há ainda, no estado de São Paulo, o Centro de Referência e Apoio à Vítima (CRAVI), um serviço da Secretaria da Justiça e Cidadania com atendimento público e gratuito a vítimas e familiares que enfrentam violência ou crimes contra a vida.

O ambiente digital também oferece alternativas para denúncia e apoio. A plataforma Me Too Brasil, por exemplo, permite as vítimas de violência sexual realizarem denúncias anônimas ou registrem a situação que acontece com outras pessoas. Já a SaferNet Brasil é um canal de denúncias sobre crimes e violações contra direitos humanos online.

Esses programas se somam ao trabalho de milhares de Organizações Não Governamentais (ONGs) espalhadas pelo país, que atuam em níveis nacional, estadual e municipal no apoio e defesa das mulheres em situação de violência.

Relembrando as palavras de Ana Silvia Passberg de Amorim, fundadora da ONG “Nunca desistam, lutem por seus direitos e saibam que sempre há pessoas esperando para ajudar”, essas redes de apoio reforçam a importância da denúncia, validando o relato e a palavra das vítimas como fundamentais no combate a todas as formas de violência contra a mulher.

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