Como o aumento de representatividade feminina no futebol brasileiro provoca misoginia confundida com opinião
Por Leonardo Caetano
Nos últimos anos, tornou-se comum a presença de cada vez mais mulheres narrando e comentando jogos de futebol na televisão e nas rádios brasileiras, cenário que poderia parecer inimaginável a até, no mínimo, três anos atrás. Um dos marcos da narração feminina no esporte mais amado pelo brasileiro foi a narração de Renata Silveira na Copa do Mundo de 2022, a primeira partida de futebol a ser narrada por uma mulher em TV aberta.
Contudo, a história das mulheres nos bastidores do futebol não é recente. De acordo com um artigo publicado pela revista Radiofonias: Revista de estudos em mídia sonora, da Universidade Federal de Ouro Preto, o primeiro registro de uma narração feminina na rádio foi feito por Zuleide Ranieri e Claudete Troiano, transmitida pela Rádio Mulher em São Paulo, na década de 1970.
Apesar disso, a predominância de homens nas narrações esportivas ao longo de toda a trajetória da Comunicação causou uma enorme dificuldade para que as mulheres pudessem se inserir nesse mercado de trabalho, devido à resistência por parte do público em geral. Letícia Pinho, jornalista e narradora no canal Goat Brasil, explica mais sobre essa condição.
“[A narração] é um espaço que os homens têm o domínio a muitos anos, se você pegar [por exemplo] um cara que tem 40, 50 anos, a vida inteira dele aquele espaço foi dominado por homens, então ele acha que aquele espaço é deles, e não das mulheres”, afirmou. “Isso incentiva uma misoginia, ainda que eles nem entendam o que é isso”, completou.

Jornalista Letícia Pinho (Foto: Redes sociais)
A jornalista explicou sobre um dos motivos para que essa discriminação aconteça com as narradoras no futebol. Segundo ela, “as pessoas se acostumaram durante anos a ouvirem só homens na narração, então quando chega uma mulher [percebem que] o timbre de voz é diferente, o modo de narrar é diferente (…) causa uma estranheza, isso é um fato”.
Para a narradora também é evidente que a falta de referências femininas no ramo da narração esportiva fez com que poucas mulheres tivessem em quem se espelhar no início de suas carreiras, o que é resultado dos fatores sociais que impediram as mulheres de adentrarem e participarem do futebol por muito tempo.
Em 1941, a prática do futebol feminino foi proibida no Brasil durante o governo de Getúlio Vargas e só voltou a ser permitida em 1983, mais de 40 anos depois. “Enquanto o time masculino do Brasil já tinha [conquistado] três Copas do Mundo, o futebol feminino nem podia ser praticado [ainda]”, comentou Letícia sobre o histórico do esporte para as mulheres.
A jornalista e narradora destacou ainda as dificuldades sofridas por ela e por outras colegas de trabalho através de comentários e xingamentos machistas recebidos nas redes sociais e em quase todas as suas transmissões realizadas. “A gente normalizou, meio que inconscientemente, ser xingada quando a gente começa a trabalhar”, comentou.
Letícia relatou episódios de assédios sofridos não apenas por narradoras e comentaristas com quem já teve contato, mas também por outras profissionais que trabalham dentro dos campos de futebol (repórteres, assistentes de campo, árbitras), por parte dos jogadores e torcedores. “Hoje, do mesmo jeito que eu espero entrar [ao vivo] e já ser xingada, elas já esperam entrar em campo e serem assediadas de alguma forma”, explica.
Mesmo com a iminente inclusão de gênero no cenário do jornalismo esportivo brasileiro, uma das críticas mais comuns feitas por torcedores que desaprovam as narrações femininas é a falta de preparo e conhecimento teórico a respeito do esporte.
“Na minha opinião, falta emoção e experiência nas transmissões femininas e acho que o estilo de narração não combina com grandes eventos”, afirma um torcedor entrevistado que preferiu não se identificar.
O fã argumenta que a narração feminina possui alguns atrasos acerca do conhecimento técnico e tático sobre o esporte, algo que é, sem dúvida, discutido, tendo em vista a grande diferença entre o tempo que as mulheres e os homens tiveram para jogar, e consequentemente, aprender sobre o futebol em si.
O torcedor considera que a narração das mulheres tem muitos déficits em relação à narração masculina. Entre eles, está a falta de ‘paixão’ pelo futebol, além da ausência do arcabouço necessário. “Poderiam demonstrar mais emoção nas narrações e maior domínio dos conhecimentos futebolísticos, coisa que é pouco demonstrada pelo público feminino”, afirma.
Ele ainda critica a forma como as narradoras se relacionam com o telespectador ou com o ouvinte, alegando a desconexão com o esporte e distanciamento do público. “[Deveriam] interagir mais com o público e com os acontecimentos do jogo, compartilhando também experiências pessoais para tornar a narração mais fluida”, defende.
Algo que para o fã é muito característico das narrações tradicionais masculinas é o compartilhamento de histórias pessoais por parte dos narradores/comentadores. Considerando que muitos comentaristas são ex-jogadores de diversos grandes clubes e que tiveram suas carreiras profissionais ligadas diretamente ao futebol além da comunicação, isso cria um elemento que, para o torcedor comum, é indispensável na experiência de assistir ou ouvir futebol.
Recentemente no podcast do youtuber conhecido como Cross, o narrador Nivaldo Prieto compartilhou brevemente sua perspectiva sobre esse tema, destacando como a diferença de tempo entre a presença da narração feminina e a narração masculina nas partidas de futebol impacta na aceitação do público, para além da qualidade das narrações propriamente ditas.
“[O público] acaba exigindo muito das narradoras, é tudo muito novo, nós temos pouco tempo de mulher narrando na televisão, pouquíssimo tempo. Então eu acho que falta exatamente isso: tempo”, disse o narrador.
Porém, para Letícia, há uma expectativa de mudança do panorama que as mulheres enfrentam hoje em relação às grandes transmissões de futebol. “Antes era muito difícil a gente ver mulheres apresentando telejornais esportivos, comentando jogos. E hoje praticamente todas as transmissões que a gente assiste tem alguma mulher comentando ou narrando”, enxergou com otimismo a jornalista.
Todavia, ela ressalta a necessidade de superação da discriminação entre homens e mulheres em prol do futuro do jornalismo esportivo. “É claro que a gente ainda não está em uma igualdade ideal, mas é um movimento que está acontecendo”, concluiu.
