O relato contundente de uma mulher vítima de violência doméstica, sua luta pela liberdade e a busca por um novo começo, mesmo após anos de sofrimento em silêncio.

Por Beatriz De Almeida

Égle Nascimento, de 36 anos, tinha apenas duas ambições na vida: ter um ensino superior e construir uma família. Residente da capital de São Paulo, hoje ela é formada em pedagogia e em serviço social, e trabalha como professora de educação infantil no município. Porém, ainda havia a vontade de se formar em Direito, mas por conta de seu primeiro relacionamento, trancou a matrícula na metade do curso. Égle foi uma das vítimas de violência doméstica.

Essa violência, que ocorre nas relações pessoais e em ambientes familiares, mostra a frequência e a naturalidade da estrutura social que engrandece o poder dos homens sobre as mulheres. As agressões atingem mais o gênero feminino, que além da violência doméstica, sofre da mesma forma a violência sexual, psicológica, parental e patrimonial.

“No início do namoro ele já apresentou alguns sinais. Era um tipo de namoro que eu não podia olhar para os lados. Se eu olhasse, ele já perguntava: ‘Qual é, pra quem você está olhando?’. E tinha também a questão da perseguição, se eu entrasse dentro do ônibus, ele mandava descer. Era uma cena de filme. O carro de um lado e o ônibus do outro. [Ele dizia:] ‘desce, desce, desce’. E eu com vergonha das pessoas já olhando, acabava descendo do ônibus e aí eu entrava no carro”, relata Égle.

“Tenho dois filhos com ele, meus filhos foi porque eu quis mesmo. O processo da gravidez foi muito tranquilo, ele me deixou tranquila, muito em paz. Não bebia e não usava drogas. Foi um momento de conforto durante os nove meses do meu primeiro filho. Depois começou tudo de novo, né? Ele bebia e vinha fazer agressões”, conta.

Relatos como esses são situações que acontecem durante o ciclo da violência. No ciclo, há a primeira fase em que o agressor se mostra tenso e irritado, descontando a raiva na vítima por coisas insignificantes. Na segunda fase, ele perde o controle e provoca a agressão, toda a tensão não praticada na primeira fase é feita nesta. Por último, vem o arrependimento na terceira fase, conhecida como “lua de mel”, onde o agressor se lamenta e mostra-se amável, a fim de conseguir se reconciliar com a vítima.

A mulher, enquanto o agressor diz que vai mudar, relembra os momentos felizes do casal e fica presa nesse ciclo que é constantemente repetido.


Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha, considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três mais avançadas do mundo, é a norma mais conhecida para amparar as mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil. Nela consta a proteção para as vítimas de violência, a punição dos agressores, o fortalecimento da autonomia das mulheres, os meios de assistência e tratamento humanizado, como também as políticas públicas que visam o enfrentamento e o combate às violências de gênero.

Segundo o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, todas as categorias de violência contra as mulheres registraram um crescimento em 2023. As agressões decorrentes de violência doméstica tiveram 258.941 registros. O número 190, da polícia militar, foi acionado 848.036 vezes para reportar episódios de violência doméstica.

Égle conta que tinha certeza que iria se separar, mas algumas questões a prendiam no relacionamento. “Eu cheguei até separar algumas vezes e ir pra casa da mãe, do pai e tal, mas apertava aquela questão. ‘Nossa, eu não estou na minha casa, estou na casa de parente, não estou no meu canto’. Aí eu acabava voltando e as crianças cobrando [a presença do pai]”.

Demorou dez anos para que Égle se separasse de seu ex-marido. As agressões aconteciam de madrugada, para que seus filhos não presenciassem as cenas. Vinda de berço de violência doméstica, sempre presenciou sua mãe apanhando. Para ela, no dia que seus filhos vissem as agressões, se divorciariam de vez.

“Já faz seis anos que me divorciei, achei que não conseguiria. Não é fácil. Hoje a gente mantém a lei da boa convivência pelas crianças, que estão com dez e doze anos. E agora, depois que entrei em outro relacionamento, ele veio falando que queria ter a família de volta, mas o sentimento acaba. Pra mim ele acabou na primeira agressão”, acrescenta.


Novo relacionamento: a violência se repete

Com medo da reação de seu ex-esposo, Égle teve receio de se envolver com outras pessoas assim que terminou o casamento. Seu último relacionamento aconteceu há oito meses. Um homem firme e de confiança, assim ela pensava.

O novo namorado foi morar na casa de Égle, mesmo se relacionando há pouco tempo. Seu desejo era viver uma vida ao seu lado. “[Ele dizia:] ‘vamos reconstruir, vamos viver’. Ele queria ter filhos e eu parei de tomar remédio, aí depois de três meses engravidei”.

A gravidez é um período de cuidado intenso e da responsabilidade em trazer uma nova vida ao mundo. Neste momento, o vínculo entre o casal se torna essencial para fortalecer a gestante, que enfrenta grandes mudanças hormonais e físicas, muitas vezes abalando suas emoções. Infelizmente, Égle não contou com esse apoio. “No quarto mês [de gestação], ele alugou uma casa e foi embora. Veio diabete, pressão alta, queda de cabelo, obesidade, tudo ao mesmo tempo, no qual eu não passei nas outras gestações”.

Égle considera esse acontecimento uma forma de violência psicológica. Em uma sessão com sua psicóloga, ela expressou o sentimento de abandono paterno, mas a especialista discordou, afirmando que isso não caracterizava uma violência psicológica. “Ela falou: ‘ah não tanto, eu não vejo isso como uma violência psicológica’. Eu vejo, porque ele pensou só nele. Por que ele fez isso? Por que não se planejou melhor? Por que ele não foi mais sincero comigo?”.

A fala da especialista é contraditória, visto que a violência psicológica é considerada qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição da autoestima e que prejudique ou perturbe o pleno desenvolvimento da mulher.

Em entrevista, Égle apresentou sua história com o intuito de apoiar outras vítimas. “É possível conversar e reconstruir. É possível viver uma nova história. Eu ainda não desisti do amor, um dia vou ter uma pessoa boa. Quem perdeu foi eles [ex-marido e ex-namorado].

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