Por Letícia Barros

Foto: Estúdio A24
A uma vista desatenta, Aftersun, filme autobiográfico de estreia de Charlotte Wells, parece ser monótono e deixar vazios sem resposta, porém, com um olhar mais diligente, a obra mostra que sua beleza está exatamente aí. É na sutileza dos detalhes, como o posicionamento da câmera e os sentimentos não ditos, mas muito bem expressados, na qual ela mostra o seu diferencial. O enredo não segue o formato tradicional, de começo, meio e fim, mas inova ao deixar ao publico a abertura de interpretar os tão complexos personagens baseando-se em suas experiências individuais. A partir daqui serão reveladas cenas importantes do longa.
O filme é permeado por uma certa angústia, trazida pelo personagem de Calum (Paul Mescal), que, no entanto, nunca é de fato explicada. Sabemos que aquela é a viagem final entre Calum e Sophie-pai e filha, o que é comprovado pelo trecho da última música: “This is our last dance” (Essa é nossa última dança), na cena mais bonita do longa. E parece que ele também sabe disso. O pai tenta fazer com que a viagem seja perfeita, mesmo em meio a problemas psicológicos e profundas dificuldades financeiras, algo pelo qual se condena.
Contudo, o que realmente acontece com o personagem fica em aberto. Esse desejo dele sob seus últimos momentos juntos sugere que talvez o distanciamento tenha se dado pelo seu suicídio, o que justificaria atitudes relutantes da Sophie do presente em suas imaginações, por conta de o pai tê-la deixado; fato que ainda poderia ser indicado pela fala de Calum de estar surpreso de ter chegado aos 30 anos e os sons de ambulância na última cena. Um outro elemento que contribui para narrativa de despedida é a camiseta do pai, usada tanto na cena inicial, para representar o início do fim, quanto no desfecho, o que colabora para uma perspectiva cíclica da viagem final.

Foto: Divulgação IMDb
A Sophie do presente, agora com 31 anos- mesma idade do pai nas filmagens, mais madura e sem a máscara de heroísmo e perfeição que é dada à figura paterna na infância, tenta enxergar além do que era capaz de perceber aos seus 11 anos, ou quem sabe, que preferia não perceber, por medo que sua fonte de segurança também tivesse problemas. Como a própria sinopse sugere, a filha “tenta reconciliar o pai que conheceu com o homem que desconhecia”, por meio dos registros gravados por ambos em vídeos cassetes.
É aí que entra uma das principais qualidades da obra- a fotografia. Ela é capaz de transmitir ideias, perspectivas e sentimentos, ainda sendo extremamente bela e cativante, tendo a capacidade de gerar uma sensação nostálgica, como se nós fizéssemos parte daquela família. Seu grande destaque está nas gravações em câmeras antigas, que dão um toque vintage associado a memória no longa. É na figura de Calum que ela desempenha seu principal papel. Através dos enquadramentos que tentam esconder o pai nas telas da TV e nos limites da câmera, o personagem é fragmentado- assim como busca ser para a filha, em uma tentativa de não demonstrar à menina suas complicações internas e assim, protegê-la, o que agora é percebido por ela mais velha.
A narrativa também colabora para diferenciar pai e filha em seus momentos de vida. De maneira engenhosa, Wells, relaciona-os inclusive com a água. Sophie (Frankie Corio) está entrando na pré-adolescência e começa a explorar as vivências da época, como o primeiro beijo e a amizade com adolescentes mais velhos; ela tem um oceano de possibilidades e descobertas à sua frente. Em contrapartida, Calum, apesar de novo, como até é confundido a ser irmão da filha, já experiencia as questões da vida adulta e, até o momento, não sabe lidar com as mesmas, e talvez nunca tenha descoberto; ele é como um mar revolto; tumultuado e profundo.
Na obra, mesmo os momentos mais felizes transbordam melancolia e tristeza, graças à uma sensação de finitude, ainda que não entendamos o porquê. Os atores principais, Mescal e Corio, exercem com maestria seus papéis e dão um soco no estômago do telespectador, que acaba o filme com um certo vazio e um anseio de analisar a própria relação com os pais. Aftersun é um perfeito relato da memória, da complexa e sensível relação entre pais e filhos e da saudade que cerca o luto.
