Pela primeira vez, atriz trans recebe destaque em novela da Globo
Por Geovana Menussi
A novela “Renascer”, remake da versão original de 1993 de mesmo nome, atualmente em exibição na rede Globo, representa um marco histórico para a representatividade LGBTQIAP+ na teledramaturgia brasileira. A personagem Buba, interpretada pela atriz trans Gabriela Medeiros, rompe com os estereótipos e apresenta uma narrativa complexa e multifacetada da vivência trans, conquistando o público e gerando debates importantes sobre a temática. Entretanto, ainda há uma lacuna de representatividades reais no cenário dramaturgo nacional.
A presença de personagens LGBTQIAP+ nas novelas brasileiras tem crescido nos últimos anos, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido em termos de representatividade autêntica e livre de estereótipos. Analisando três casais que marcaram as novelas brasileiras – Marcela e Marina (Amor e Revolução), Félix e Nico (Amor à Vida) e Crô e Baldo (Fina Estampa) – podemos observar avanços e desafios na forma como a diversidade é retratada na teledramaturgia nacional.
Marcela (Luciana Vendramini) e Mariana (Gisele Tigre), em “Amor e Revolução”, de Tiago Santiago, marcaram a história por protagonizarem o primeiro beijo lésbico em uma novela brasileira do horário nobre. Apesar do pioneirismo, a relação era envolta em preconceito e dramas familiares, perpetuando a ideia da homossexualidade como algo trágico. A cena foi exibida em maio de 2011 pelo SBT e provocou tanta polêmica que a emissora, pouco depois, determinou ao autor que não mostrasse mais nada semelhante na novela.
Os personagens Félix (Mateus Solano) e Nico (Thiago Fragoso), em “Amor à Vida”, de Walcyr Carrasco, representaram um casal gay mais complexo. Félix, inicialmente um vilão homofóbico, se apaixona por Nico e passa por uma jornada de autoaceitação, se mostrando como um homem gay não performático da heteronormatividade esperada para esses personagens.
Em entrevista, o jornalista e produtor do programa “Pipoca Cabeça”, da RUV Podcasts, Davi Marcelgo, afirma que “pensando em homens LGBTs, acho que é o maior exemplo que a gente tem, porque ele é um personagem muito complexo com muitas nuances. Ele tem problemas com o pai, problemas com a com a irmã dele. Ele é um vilão e tem um arco de redenção, ele se torna um mocinho. Muito pelo que ele caiu no gosto do público”.
A respeito dos estereótipos que sempre envolvem o papel do gay na sociedade, Davi explica que “o Félix era esse personagem que não tá performando uma heteronormatividade. Então ele não é aquele personagem que ‘ah ele é gay’, só que ele não tem nada do que compõem uma pessoa gay e não precisa de uma cultura queer que o envolve. Não sendo também o suco do estereótipo como a gente pode ter vários exemplos”.

Nico (Thiago Fragoso) e Félix (Mateus Solano), em “Amor à Vida” (Reprodução/TV Globo)
Por outro lado, pensando em personagens totalmente estereotipados, Crô (Marcelo Serrado) em “Fina Estampa”, de Aguinaldo Silva, é um dos maiores exemplos. Fortalecendo a ideia de “gay animado”, é totalmente caricato e utilizado como um alívio cômico na novela através do humor ácido e da extravagância. O que para muitos críticos foi considerado até um desserviço pra comunidade, pois perpetua preconceitos e reforça as normas esperadas para homens gays.
Além dos casais, na novela “A Força do Querer”, Ivan (Carol Duarte) se destaca como um dos personagens mais marcantes da trama. Nascido como Ivana, ele enfrenta desde cedo a luta por se reconhecer como homem transgênero, em um longo processo de autoaceitação e busca por reconhecimento. Ele precisa lidar com a incompreensão e o julgamento da família, especialmente da mãe, Joyce (Maria Fernanda Cândido), que inicialmente resiste à sua transição de gênero. A novela retrata com sensibilidade os desafios enfrentados por pessoas transgênero, como a necessidade de se adequar às expectativas sociais e o impacto do tratamento hormonal no corpo.
Atualmente, a personagem Buba (Gabriela Medeiros) é a maior representação trans no cenário das novelas nacionais. A novela Renascer, inicialmente transmitida em 1993 e criada por Benedito Ruy Barbosa, contou a história da personagem Buba (Maria Luisa Mendonça) de uma forma diferente.

Maria Luísa Mendonça interpretou Buba na primeira versão de “Renascer”, em 1993 e Gabriela Medeiros assume o papel no remake de 2024. Foto 1: TV Globo/Divulgação / Foto 2: Estevam Avellar/TV Globo
Na primeira edição, ela era uma personagem intersexo, na época chamada de hermafrodita — termo que não é mais utilizado por seu teor pejorativo para se referir a pessoas nascidas com os órgãos sexuais internos e externos. No remake de Bruno Luperi, neto de Barbosa, a personagem é uma mulher trans — também interpretada por uma mulher trans — e enfrenta os mesmos desafios que a personagem original, mas com uma perspectiva mais atualizada e sensível.
Em entrevista ao jornal O Globo, o autor da novela, Bruno Luperi, declara a importância da mudança da pauta. “Toda cena tem que dar um passo adiante dessa temática. É compromisso de todos os capítulos entreter, informar e apresentar discussões pertinentes em escala nacional. ‘Renascer’ está inteiramente costurada pelas linhas do tempo presente. Acredito que a novela no Brasil, se firma como instrumento de transformação e união do país, e que tem, por natureza, essa missão de desatar tabus”, afirma.
A trajetória da personagem, desde a original interpretada por Maria Luisa Mendonça até a versão atual de Gabriela Medeiros, demonstra a evolução da sociedade em relação à diversidade sexual e à luta por uma maior inclusão. Em janeiro, a atriz compartilhou uma foto da época em que era criança e escreveu um texto sobre suas mudanças ao longo da vida.
“Se eu pudesse abraçar essa criança aí da foto eu diria a ela que: ‘Você não nasceu no corpo errado, seu jeitinho de ser é especial, o seu olhar para o mundo é único, a sua sensibilidade não é sinal de fraqueza’. Diria também para essa criança não chorar mais quando cortarem cabelo, que uma hora ele irá crescer, diria para não retrair o corpo por ter vergonha de ser quem é”, declarou Gabriela (via instagram @gabrielamedeiros).
Para Guilherme Leal, jornalista e produtor do programa “DISCOtindo” da RUV Podcasts, a diversidade no ‘mainstream’ é algo extremamente importante e ocupar lugares que a mídia hegemônica despreza, é essencial. “Não é só na vida. Na arte também, essas pessoas existem. É a partir da arte que elas podem se mostrar, que elas podem conversar sobre a sua vivência, né? E principalmente sobre vivência queer”.
A presença de personagens LGBTQIA+ nas novelas brasileiras não se trata apenas de representatividade, mas sim, da construção de um espelho para uma parcela significativa da população que, por muito tempo, se viu invisibilizada na tela.
