Para o Ministério Público, a atitude de ler a Bíblia antes das sessões privilegia uma religião e ofende a liberdade religiosa
Por Ana Helena Masson Maiolino

Há 33 anos, todas as sessões da Câmara dos Deputados de Bauru começam da mesma forma: o presidente lê uma passagem da Bíblia, pede a proteção de Deus e deixa um exemplar do livro católico em cima da mesa durante as audiências, seguindo a Resolução n°269/1990 do órgão municipal. No entanto, esse cenário está prestes a mudar.
Em novembro de 2023, o Procurador-geral da Justiça do Estado de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo declarou que a medida era inconstitucional, já que afrontava o princípio da laicidade do Estado assegurado pela Constituição Federal. Ele ressaltou, ainda, que o objetivo era de que o Estado não aja como se tivesse uma religião oficial, o que seria desrespeitoso com outras crenças. Para o Ministério Público, a atitude de ler a Bíblia privilegia uma religião e, por conseguinte, ofende a liberdade religiosa e isso é impensável para um órgão estatal.
No dia 17 de abril de 2024, o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo (TJ-SP), por votação unânime, proibiu a continuidade da ação e ressaltou que o Estado deve se manter neutro quanto ao assunto. A Câmara Municipal de Bauru, em nota, na época, afirmou que ainda não tinha sido notificada, mas assim que tivesse conhecimento, recorreria.
Júnior Rodrigues (PSD), presidente do legislativo da cidade, ressaltou que o “regime interno está em vigência há 33 anos e nunca houve nenhuma indagação sobre tais dispositivos por qualquer pessoa que seja, a indicar um contexto de privilégio, preconceito, discriminação ou intolerância religiosa”.
A Câmara argumenta, ainda, que “todas as Constituições brasileiras, exceto as de
1891 e 1937, invocaram a proteção de Deus quando foram promulgadas” e que “não se trata de adoção de ideologia ou corrente religiosa em detrimento de outra, mas sim de uma manifestação histórico-cultural de uma fé em Deus genérica e abstratamente considerada”. Depois do clímax, a Câmara se reposicionou e declarou que cumprirá a determinação judicial e que suspenderá temporariamente a eficácia do trecho do regimento em questão.
Carlo José Napolitano, professor associado da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e especialista em Direito Constitucional, discorda da opinião do presidente da Câmara e comenta que a proibição respeita o texto constitucional, uma vez que ele “estabelece que nós somos um Estado laico, que não pode haver subvenções, menções a qualquer tipo de religião e, a partir do momento que se faz a leitura da Bíblia, que é um documento religioso, isso indica um segmento religioso, que é o cristianismo”. Para ele, a decisão do Tribunal de Justiça foi acertada porque “o texto constitucional não permite que se faça proselitismo religioso em repartições públicas, em estabelecimentos públicos” e exclui outros segmentos.
O professor afirma ainda que “o Direito é manifestação de determinada cultura” e que “a legislação é um reflexo de hábitos culturais”, mas, reitera que, em um Estado laico, a separação é importante e necessária. A medida serviria apenas, então, como justificativa de ações para os eleitores e a revogação é extremamente difícil. “Se quiserem fazer leitura de documentos religiosos, que façam de todas”, encerra Carlo.
Em entrevista, Júnior Rodrigues, quando questionado, declarou que “a leitura da
Bíblia representa uma tradição histórica e legítima, sendo parte integrante da identidade cultural, espiritual e religiosa do povo bauruense”. A decisão do Tribunal de Justiça, segundo ele, é controversa e “fere as instâncias culturais, religiosas e democráticas da cidade”, já que “desconsidera a história e identidade religiosa do povo, além de restringir a liberdade de expressão e manifestação cultural da Câmara Municipal de Bauru e de seus representantes”.
Ademais, ele reitera que a prática tradicional “é inclusiva e respeitosa com as diferentes crenças religiosas da comunidade, então a proibição poderia ser considerada desnecessária”. Para ele, a sociedade pode ser afetada de diversas formas, dependendo do posicionamento de cada indivíduo, e que, em qualquer caso, pode gerar debates e divisões na comunidade: “Alguns podem sentir que sua liberdade religiosa e cultural está sendo violada, enquanto outros podem ver a decisão como um avanço na separação entre Estado e religião”.
Quando questionado sobre vereadores de outras religiões se sentirem excluídos ou
desrespeitados, o presidente da Câmara, respondeu que isso só é possível se “a prática da leitura da Bíblia for percebida como uma imposição de uma única visão religiosa sobre todos os membros do legislativo”. Ele afirma, ainda que, “nesse caso, a diversidade religiosa e a inclusão de outras crenças poderiam ser comprometidas”. Além disso, Júnior Rodrigues defende que deve haver um equilíbrio entre a laicidade do Estado e o respeito à liberdade religiosa e à diversidade cultural da sociedade.
Conclui-se, então, que a pauta causa discussões em diversos setores da sociedade e movimenta inúmeros grupos acerca do que é, de fato, certo. Fica claro, no entanto, que o professor e o presidente da Câmara discordam. A partir daí, cabe ao indivíduo estudar sobre o que foi apresentado, escolher de que lado ficar e esperar que novos fatos venham à tona.
