Com curadoria de Wanessa Yano e idealizada pelas produtoras culturais Ciça Pereira e Tainá Ramos,“Herança” reforça a importância da arte como instrumento de debate social,resistência e expressão da cultura negra.
Por Giulia Morais
A Exposição “Herança: Arte Negra Mudando o Mundo”, acontece em São Paulo, no espaço Ocupação 9 de Julho e ficará aberta ao público até o dia 04 de junho. É o primeiro evento presencial realizado pela plataforma digital Gota Preta, um coletivo formado inteiramente por artistas negros. As visitações acontecem na sala multiuso da ocupação,das 11h até as 20h.
Com obras de Ione Maria, Nicolau Andreass, Mariana Rodrigues, Abigail Campos Leal, Sheyla Ayo, João Cândido e Markus Cza, a exposição está repleta de desenhos, ilustrações, montagens, colagens, fotografias e pinturas sobre a cultura africana, exaltando as raízes da afro brasilidade.

de Abigail Campos Leal(Foto: arquivo pessoal)

Da esquerda para direita: imagem 1 obra “Esplendor, poder y triunfo”, de Abigail Campos Leal e imagem 2 obra de Ione Maria(Fotos: arquivo pessoal)
Ao ir além do conceito estético de beleza que a arte proporciona, o objetivo da exposição é questionar as inquietações existentes dentro de cada pessoa à respeito da ancestralidade. Em entrevista, o artista plástico Markus Cza, um dos expositores no projeto, disse que “a exposição não é para concordar, sabe?é para se questionar do porquê você gosta ou não daquilo que vê, é para se conhecer, entender narrativas e poesias diferentes e ter um outro olhar”.
Outra proposta abordada é encorajar as pessoas a espalharem a arte e as ideias internas, a partir da celebração das memórias, sobretudo, dos povos que foram marginalizados e utilizaram da expressão artística para lutar contra as diversas formas de violências sofridas.
“Elas não estão sozinhas, mesmo o caminho sendo muito difícil, é possível sim você ser uma pessoa dissidente, racializada, fora desse padrão social e fazer seu trabalho, se expressar, porque às vezes, você tem uma ideia e se todo mundo soubesse, talvez faria uma diferença e você não sabe disso”, diz Markus.
A ocupação 9 de Julho

Ocupação 9 de Julho(foto: Arquivo Pessoal)
A escolha do local é historicamente significativa e pontual para a construção da narrativa apresentada na exposição, que preza, como diz a produtora Tainá Ramos, pela “arte em espaços acessíveis e seguros para a nossa existência”.
O antigo prédio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) permaneceu por mais de 20 anos vazio e degradado, sendo ocupado pela primeira vez em 1997 e, novamente, em 2016, em que se tornou a Ocupação 9 de Julho do MSTC – Movimento dos Sem Teto do Centro, em São Paulo, que visa garantir o direito à moradia e a cidade como um bem comum.
O prédio de 14 andares, abriga hoje 128 famílias e cerca de 500 pessoas, vindas de diversas partes do Brasil e do mundo, entre elas África, América do Sul e América Central, com imigrantes de cerca de onze países. O espaço conta com biblioteca, quadra, horta comunitária, brinquedoteca, marcenaria, galeria de arte, brechó, refeitório, além da famosa cozinha coletiva.
O local, por meio do esforço de muitas pessoas, em especial a liderança do MSTC, Carmen Silva, canaliza hoje a força e relevância dos movimentos sociais, ao reivindicar que a dignidade da vida é, também, ter acesso a trabalho, saúde, educação, cultura e lazer. Nessa perspectiva, além de promoverem almoços abertos com oficinas de gastronomia, há também outras atividades, como a galeria Reocupa e o CineOcupa.
Dessa forma, com tantos anos de luta pela cidadania plena, a escolha desse espaço múltiplo de circulação é crucial para que as pessoas possam conhecê-lo, se sentirem acolhidas e ocupar “lugares politicamente seguros”.
Assim, como diz a produtora, “as questões individuais se transformam em algo coletivo, como uma forma de expressão da sua individualidade,que também é subjetiva,mas contempla muitas outras pessoas que vivenciam aquilo”.
Compartilhar a produção de artistas racializados periféricos num local que é símbolo da resistência tem como propósito também desmistificar a criminalização despejada nos movimentos de moradia e isso se dá a partir do apoio da noção de comunidade como algo que gera trocas, interação e afetos.
O bairro Bela Vista e a cultura negra
Popularmente conhecido como Bexiga, localizado no centro da cidade de São Paulo, a Bela Vista é considerada um dos lugares em que a ancestralidade africana se fundamentou em terras brasileiras.
No fim do período escravocrata, surgiram os quilombos urbanos: casas coletivas ou núcleos semi-rurais, que ofereciam maior anonimato para foragidos das fazendas e para a comunidade negra da época. É nesse cenário que se constitui, no século XIX, o quilombo Saracura, região que se tornou mais tarde o núcleo negro da capital paulista, criando espaços para a sociabilidade negra, originando, assim, o bairro Bela Vista.
É nesse território que surgiram terreiros de candomblé e umbanda, além de clubes como o Social Negro Aristocrata, casas de pagodes na rua Treze de Maio e importantes escolas de maracatu e Samba, como a Vai-Vai. Dessa forma, mesmo com a discriminação, marginalização e o crescimento do racismo estrutural que a comunidade preta vivia, os negros se organizavam para terem melhores condições, lutando também pela quebra desses preconceitos ao mesmo tempo em que criavam naqueles espaços, raízes que fortaleciam a identidade negra.
Portanto, a Bela Vista é ainda hoje, um local de preservação da música, dança, arte, religião e tradições afro-brasileiras. Por esse motivo, a entrevistada Ciça Pereira acredita que realizar exposições nessa área de São Paulo é “posicionar novos imaginários em relação ao que as pessoas entendem sobre negritude”.
O Projeto Gota Preta e o mercado da arte

Obra “Memórias de uma cidade preta”, de Markus Cza(Foto: Arquivo Pessoal)
O projeto Gota Preta é uma realização da Zeferina Produções, criado em 2019 e idealizado por Ciça Pereira e Tainá Ramos, que tem por objetivo promover os olhares artísticos de artistas racializados, com foco em narrativas afro-diaspóricas, lgbtqia+,mulheres e indígenas.
A motivação deste trabalho nasce, para Tainá, de “um incômodo nosso, de como o mercado da arte é hostil para pessoas como nós e para artistas que compõem o gota preta”. Ela reflete ainda sobre o projeto ser uma ferramenta “de visibilidade para esses artistas, trabalhando com os nossos, realizando nossos sonhos e objetivos, mostrando que é possível fazer exposições de arte monetizando as pessoas adequadamente, tratando com respeito e dignidade, que é o mínimo”.
Para Ciça, fazer o Gota Preta é trazer um novo contexto no mercado da arte, o contexto de “humanizar para que a gente se sinta livre para poder ser pessoas, fazendo arte”. Sobre o mercado artístico, a produtora acredita que é “uma indústria que objetifica, usufrui mesmo do nosso projeto como um produto e não como expressão humana”, ela diz que isso prejudica pois as obras passam a competirem entre si e não confluem, nem realizam narrativas que juntas, se complementam.
Nessa jornada por novos olhares da manifestação artística, que permita tornar a arte acessível e representativa nas questões da periferia, das memórias e ancestralidade que existem e reexistem nas comunidades, Tainá reflete que realizar esse projeto é “operar uma exposição de arte de uma maneira diferente do que o mercado opera, com a potência que uma exposição de arte em qualquer lugar tem”.
A exposição Herança reflete a importância de se conectar com a ancestralidade e entender que ela é uma força ativa e viva no presente, algo que perpassa o tempo e influencia o modo de viver e de ver o mundo.

Obra de Ione Maria (foto: Arquivo pessoal)
Serviço:
A Exposição Herança ocorre na Ocupação 9 de Julho, sala 10(Multiuso), no Térreo, na Rua Álvaro de Carvalho,427- Bela Vista, São Paulo. As visitações ficam abertas ao público até dia 04 de Junho, das 11h às 20h. A entrada é gratuita.
