Premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, longa-metragem conquistou indicações em cinco categorias no Oscar, incluindo a de Melhor Filme (Foto: Diamond Films)
Matheus Santos
Não é por acaso que o novo filme da diretora francesa Justine Triet tenha conquistado diversos prêmios e sido indicado em categorias relevantes no Oscar. Anatomia de uma Queda é resultado das observações inquietantes da nossa realidade, vista sob a lente de alguém que questiona fato e ficção.
Distanciando-se dos clichês dos dramas de tribunais dos últimos anos, como Saint Omer e O Caso Goldman, Triet e Arthur Harari criam um roteiro instigante sobre a sociedade contemporânea, sobretudo em relação à crescente tendência da pós-verdade. O enredo é bastante persuasivo ao provocar o público a imaginar inúmeras possibilidades sobre o que realmente aconteceu no dia em que Samuel Maleski (Samuel Theis) caiu do sótão.
Com a descoberta do corpo de Samuel, inicia-se um processo de julgamento caloroso e incerto, estendendo-se por mais de duas horas e meia de filme. A defesa argumenta que ele caiu acidentalmente da janela do sótão, sofrendo uma lesão na cabeça, enquanto a acusação sustenta que a esposa Sandra Voyter (interpretada por Sandra Hüller) o atingiu com um objeto antes de empurrá-lo da sacada.
A atuação de Sandra Hüller cativa ao explorar com sensibilidade as vulnerabilidades de sua personagem diante das acusações (Foto: Diamond Films)
O diferencial do longa e o que o torna excepcional é a participação do filho do casal no júri. Daniel (Milo Machado Graner) é a única testemunha do incidente, porém ele é cego, e as autoridades não creditam a sua versão. A genialidade do filme reside nos depoimentos dos envolvidos, que não apenas destacam as perspectivas individuais sobre o ocorrido, mas também revelam os bastidores das intrigas e do desgaste do relacionamento entre o casal. Diante de todas essas histórias, Daniel se encontra desnorteado, tendo que decidir se acredita na mãe ou naquilo que lhe parece mais verdadeiro.
Assim como ele, nos vemos imersos na complexidade do relacionamento do casal e somos incapazes de enxergar a verdade subjacente. Com frequência, optamos por soluções superficiais, influenciados por nossas emoções, sem compreender completamente as nuances que permeiam a situação.
As flutuações emocionais de Sandra em meio ao desespero diante dos inúmeros interrogatórios são convincentes, pois estão sempre acompanhadas de enquadramentos distintos e de uma paleta de cores que varia entre tons quentes e frios. O destaque para o rosto de Daniel também contribui para a interpretação de Milo, uma vez que são os detalhes de suas expressões e o olhar penetrante que asseguram a presença marcante do personagem na tela, especialmente quando ele ganha maior projeção durante o julgamento.
A presença de Daniel no enredo é caracterizada pelo rompimento de estigmas em relação à suposta incapacidade de pessoas cegas perceberem o mundo (Foto: Diamond Films)
No tribunal, o filme introduz um alívio cômico por meio dos promotores, sendo um deles particularmente incisivo nas perguntas. Ele chega ao ponto de argumentar que a similaridade entre a obra de Sandra é intrínseca à sua vida amorosa, uma vez que um dos personagens de seu livro assassina o marido.
Nos diálogos, percebemos a diretora flertando com temas universais da filosofia, como a função-autor proposta por Foucault. O filósofo argumentou que deveríamos analisar as obras não apenas em termos do autor como uma figura única e central, mas sim considerar as complexas redes de discursos e práticas que contribuem para a construção de significados.
Assim, o desfecho surpreendente do filme só se concretiza após a análise minuciosa das subjetividades presentes nos depoimentos. Anatomia de uma Queda é impactante porque envolve os espectadores, proporcionando a sensação de participação no julgamento de uma mãe infeliz, ao mesmo tempo em que a acusa. Além disso, o filme revela de maneira contundente como a sociedade pode exercer pressão e subjugar os corpos femininos, manipulando ações em busca de objetivos individuais.
Jornal Contexto 