Por Letícia Hasman

O pontapé inicial da ocupação da Amazônia foi dado nos anos 1960, quando o ex-presidente Juscelino Kubitschek impulsionou a construção da rodovia Belém-Brasília. A verdadeira invasão, no entanto, ocorreu durante a ditadura empresarial-militar, que fez uso do discurso retórico de desenvolvimento para atrair a simpatia e o apoio da população aos objetivos do programa de governo em execução. 

Com o propósito de legitimar a atuação predatória na Amazônia, a ditadura elaborou planos estratégicos para legitimar a ocupação da região. Aquilo que todos tinham em comum era o imaginário de que a Amazônia seria floresta virgem intocada por humanos. Amplamente difundida pelo Estado, essa ignorância intencional foi amparada por slogans como “deserto verde” ou “deserto humano”, que justificavam a operação de destruição da floresta pelo suposto propósito de “integrar para não entregar”. 

Para suportar a ideia de “desvirginar” a floresta, o slogan adotado foi “Amazônia, terra sem homens para homens sem terra”. A mensagem era clara: para os militares da ditadura, os povos originários, que ocupam a floresta desde antes de existir essa convenção chamada Brasil, não estavam incluídos na categoria humana. Mais uma vez, os povos indígenas são inferiorizados à condição de sub-humanidades no processo colonizador que só mudou de estética, mas não de ética.

As primeiras empreitadas promovidas pela ditadura elucidaram o Estado sobre o potencial energético da Amazônia, em especial do rio Xingu. Curso de água que nasce no Mato Grosso e se transforma em afluente no rio Amazonas, no Pará, o rio Xingu é fonte de vida para povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Na década de 1980, tornou-se alvo ameaçado por dirigentes do setor elétrico motivados a acelerar projetos considerados de “baixo investimento”, como hidrelétricas construídas em plena Amazônia, num período em que a preocupação ambiental e social não faziam parte da agenda.

Mais precisamente, em 1989 foi apresentado o projeto batizado de “Complexo de Altamira”, que reunia as Usinas de Babaquara e Kararaô. A construção da usina previa a inundação de quinhentos quilômetros quadrados, uma área equivalente ao tamanho de Curitiba, e exigia o deslocamento de sete mil moradores locais. Os impactos calculados motivaram a mobilização social que culminou no 1º  Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, no município de Altamira, no Pará. Esta ação provocou repercussão internacional e contribuiu para que o projeto entrasse em hibernação.

Em 2010, porém, no segundo mandato do presidente Lula, do Partido dos Trabalhadores, a hidrelétrica de Belo Monte foi leiloada e o projeto de destruição da Amazônia, enfim, consumado. Essa barragem era um programa da ditadura que nenhum governo conseguiu efetuar devido à resistência dos povos indígenas e de movimentos sociais de Altamira. A sua concretização pela experiência de governo mais à esquerda da democracia brasileira é prova de que a exploração não tem fronteiras, nem ideologias. 

A usina de Belo Monte foi orçada em R$16 bilhões, leiloada por R$19 bilhões e financiada por R$28 bilhões de reais. O saldo desta conta são, pelo menos, 20 mil pessoas desabrigadas pela barragem; o ecossistema endêmico do rio Xingu destruído, desse modo prejudicando os meios de subsistência das comunidades tradicionais; um aumento de 75% do desmatamento após uma queda histórica em 2012; aumento, também, de até três vezes nas emissões de gases-estufa; e um processo aberto contra a Norte Energia, empresa empreendedora de Belo Monte, por etnocídio da cultura indígena. 

Em agosto de 2022, o Painel Intergovernamental sobre mudanças climáticas, o IPCC, divulgou o relatório intitulado “Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade”. O texto enfatiza como os impactos da crise climática são, e continuarão a ser, sentidos de maneira desigual por diferentes grupos. Evidenciando que existe uma associação direta entre subdesenvolvimento e alta vulnerabilidade a riscos climáticos, o relatório do IPCC abre margem para a discussão do apartheid climático.

Uma mentira, talvez a maior deste século, é a afirmação de que “estamos todos no mesmo barco”. Ao declarar isso, restringimos a espécie humana a um genérico, bem como reduzimos a atroz desigualdade que determinou a tragédia ambiental.

Quem consumiu o planeta foi uma minoria rica, majoritariamente branca, do Norte do globo, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, associada às elites extrativistas do Sul. Quem consumiu o planeta hoje constrói muros cada vez mais altos e cercas cada vez mais intransponíveis para impedir que as vítimas do seu capitalismo predatório entrem em seu território. Outra vez, são os negros e os indígenas, os mais probres e desfavorecidos que são atingidos com muito mais violência pelo aquecimento global. 

A verdade que precisa ser afirmada é que, para enfrentar o aumento anual da temperatura, a seca dos rios e dos oceanos, a insegurança alimentar provocada pela baixa da biodiversidade, a grande maioria tem um barquinho de papel e a minoria que provocou essa catástrofe, luxuosos iates com ar-condicionado.

Leitura que inspirou o texto: BRUM, Eliane. BanzeiroÒkótò: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

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