Pamela Raposo

Ao chegar em casa após um dia corrido de trabalho, ligo a TV e sou recebida pelo alvoroço da multidão, não dou atenção. Tudo o que queria era dormir após um domingo extenuante nas esteiras, onde máquinas me devoravam enquanto eu apenas executava as tarefas repetitivamente. Sem pensar, apenas fazer. A repetição cansa.

A exaustividade me amolecia, mas também me preparava para seguir o tradicional ramo da família, dos operários. Ouço o Tic-Tac constante do relógio, como quem anseia para escapar de algo. Mas escapar do que exatamente?

Sento-me no sofá, tiro as botinas e respiro profundamente, finalmente em casa. Penso comigo. Na televisão, notícias sem sentido algum são repetidas, como se alguém realmente se importasse, como se não estivéssemos saturados da monotonia cotidiana que nos persegue, e eu sentia que aquele havia de ser o meu destino. Apenas do serviço eu viveria. Um passo de cada vez. Sem saco para o alvoroço, desligo a TV e vou dormir.

Desperto abruptamente com o barulho da chaleira. O aroma de café recém coado quentinho de mamãe fazia com que me sentisse abraçada pelo doce cheiro do amarelo-claro-caramelo. Como de costume, com muita açúcar, por favor!

Minha mãe abre as janelas como quem diz “Levanta, já passou da hora de ir para o trabalho”.

Enquanto saboreio o café, conversamos sobre a vida: as traições do Tio Valério, a constante submissão da tia Vânia ao marido, e assim, seguindo.

A minha mãe sempre me acordava para contar os boatos mais instigantes, mas naquele dia ela parecia diferente. Em meio ao sufoco entre lágrimas e desespero, fala em alto e bom tom: “Eles o elegeram sem sequer pensar no seu primo”. O mundo parece parar e o Tic-Tac do relógio acompanha o silêncio.

O trauma

Em 25 de Outubro de 1975, meu primo, aos 23 anos, corria pelas areias da Praia Grande. Segundo relato de minha mãe, ele era uma espécie de catalisador da revolução, sua presença transformadora influenciava a todos ao seu redor, e ficar com ele era uma maneira de voltar outra pessoa. Valdo, como era chamado, tinha o hábito de contemplar temas proibidos, como política e religião, desafiando as convenções da época.

“Ele era diferente, contava comigo para refletir sobre o atual momento do país, e eu desconhecia o que era isso, a gente não tinha tempo pra pensar e muito menos éramos letrados para ler sobre”.
Valdo aparecia esporadicamente para visitar a família em Santos, imerso em enigmas e incessante busca por informações, observava tudo e todos. Como habilidoso jornalista na esfera política, mantinha a sete chaves os segredos das suas investigações, explorava entre páginas de livros, notícias de jornais e ligações telefônicas. Nunca comentava com a família sobre o que procurava, apenas procurava entre livros, jornais e telefonemas diários: “quando tentávamos surpreendê-lo com nossas indagações, ele habilmente se esquivava”, relata Regina.

Minha mãe revela que a avó, matriarca da família, sempre estava na correria pra tentar compreender o que se desenrolava, mas não conseguia acompanhar o ritmo acelerado de Valdo. A vida impunha-lhe responsabilidades árduas, dificultando uma compreensão plena do caminho que ele trilhava.

Dias após o último encontro da Dona Regina com Valdo foi tragicamente morto, deixando um vazio que jamais seria preenchido. Ele nunca mais voltou para nos visitar em Santos, anos depois minha avó descobriu que Valdo foi morto pelo aparato Estatal, desumanizaram-o devido a sua carreira de militante político. Minha mãe permaneceu com medo do perigo e criou a filha para ser pacífica e nunca sair dali, como Valdo e tantos outros fizeram, pela mão suja daqueles que o calaram.

A despedida dos que fizeram história

A multidão na TV transformava-se em um coro angustiante de gritos de socorro, ecoando em meus ouvidos. Eu observava minha mãe, seu rosto expressava desespero diante da realidade sombria que se desenhava. A família responsável pela morte de meu primo estava retornando ao poder, ressurgindo após longos anos de uma democracia que, aos poucos, revelava suas fragilidades. Eu não queria ligar e parecia que realmente não ligava. Neste momento, era imperativo agir, não apenas por minha mãe e meu primo, mas por todos aqueles que resistiram. Vozes na minha cabeça preenchiam todo o espaço do pensamento, impedindo-me de conter as lágrimas que se acumulavam na garganta, embora não ousasse ultrapassar aquele limite, e eu havia de ser forte por ela.

Naquela primeira noite do novo Governo, deitei-me sob a luz do luar e chorei como nunca antes, pedindo ajuda e a proteção dos meus orixás. Lamentei como quem perde tudo conquistado em apenas um dia, ainda que eu me questionasse sobre o verdadeiro significado dessas conquistas. Até então, minha vida consistia em trabalho árduo entre os maquinários, alheia à tragédia que havia atingido meu primo. Eu seguia obedientemente a máxima de minha mãe: “política, religião e futebol não se discute”.

Tudo bem.

Não agora, eu preciso entender, eu preciso compreender o que procurava e por que ele foi assassinado. Agora decidi viver pelos olhos daqueles que viveram por nós.

Dirigi-me ao quarto em que Valdo costumava dormir, entre papéis meticulosamente embrulhados. Queria ficar sozinha, mas minha mãe já estava lá, visivelmente abalada. Sentei lá e começamos a discutir sobre a vida. Ela me mostrou os papéis carimbados como “confidenciais”, revelando contas do Governo, presos políticos assassinados, nomes de policiais, entre mais um bolo de arquivos.

Neste momento, sinto-me conectada ao que chamo de “pessoas infinitas”. Elas não apenas passam, mas permanecem, deixando uma marca indelével. Assim como essas pessoas que me inspiram, estou decidida a criar um impacto duradouro, a contribuir para um legado que transcende o efêmero.

Hoje resolvi ingressar no Curso de História. Este é o começo de uma jornada Este é o começo de uma jornada que vai me revelar o passado; o passado de que somos feitos. É a busca pela compreensão, pela justiça e uma presença significativa na tapeçaria da vida.

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