Por Flávia Carvalho de Souza

Ser mulher em uma sociedade projetada para os homens é ser uma boneca em uma caixa criada e controlada por eles. 

Sou mulher e já brinquei muito com bonecas, então estou segura em afirmar que, embora a comparação não seja justa, muito menos o é a nossa realidade. Percebo-me angustiada quando minhas reflexões levam a questionamentos que não me trazem resposta alguma, porque anseio por respostas tanto quanto pelo entendimento da raiz de toda dúvida. 

E hoje, sentada em frente à penteadeira desse quarto que em breve deixará de ser meu, rodeada por outras mulheres que também cumprem o papel ao qual foram atribuídas, vejo o pensamento ousado e inquietante que faz tudo ao meu redor parecer esmaecido: como é possível que um ser humano, em toda a sua complexidade, portador de uma alma capaz de sentir e dotado de ideias e talentos que contribuem de alguma forma para a própria existência, seja tratado como um objeto raso e manipulável, desprovido de significado até que lhe seja conferido algum valor?

Remexo-me na cadeira quando o desconforto dessa dúvida parece virar uma raiva crescente. A mulher que faz meu penteado acompanha o movimento e quase sou espetada por um grampo de cabelo. Ela pede desculpas e tenho vontade de chorar, implorar para que retire o pedido e não se desculpe mais a ninguém. Tenho o ímpeto de gritar, mas preciso me conter. Bonecas não gritam, e se gritam estão possuídas, e se estão possuídas não servem e devem ser descartadas. Se em teoria eu tenho a liberdade de fazer o que quiser, poderia até mesmo chorar e gritar, mas então eu seria louca e loucas não se casam.

Hoje é o dia do meu casamento. E após esse dia, serei contida em todos os outros. Serei aquela a quem referem-se com o sobrenome de meu marido, como se o meu fosse inexistente. Serei a “Senhora Alguma Coisa”, mulher do Senhor Que Tem Um Nome Próprio. Irão me colocar na caixa de “esposa” e ali eu terei um valor, porque serei o objeto de alguém, com obrigações a cumprir e uma imagem a preservar.

Ele não é um homem ruim, e nem precisa ser. Prometeu-me vestidos e jóias como alguém ansioso para vestir e enfeitar uma boneca. Levou-me para passear de barco como eu costumava levar minhas bonecas para passear no jardim. Em nenhum momento perguntou-me como eu me sentia, ou o que sabia do sol e das estrelas, ou se queria aquele matrimônio. Não, essa última pergunta estava fora de cogitação. Meu pai já havia concordado, então estava decidido.

Quando terminam de me arrumar e encaro o reflexo da noiva relutante, a raiva feroz dá lugar a um fio de esperança, seguida do pensamento de que eu tenho uma voz e posso usá-la. Posso dizer “não” no altar, e, se não for ouvida realmente, posso fugir com minha liberdade, e então nunca terão como me prender em uma caixa.

Entregam-me um buquê de flores, mas antes que o coloquem em minha mão, saio pela porta do quarto sem olhar para trás. Vão dizer que enlouqueci, e em minha defesa direi que nunca estive tão sã. 

Quando meus pés pisam para fora da casa e correm em direção à única estrada adiante, sou recebida não com uma brisa serena e delicada, mas com um vento selvagem e impetuoso. Inspiro coragem e exalo vida.

A crônica foi inspirada na obra realista A Noiva Hesitante, de 1866, do pintor francês Auguste Toulmouche. Os pensamentos da personagem não necessariamente refletem os da autora.

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