Por Raquel Freire
Um pensamento começa a me visitar, novo, mas familiar em suas raízes. Desce até o ponto que canta em direção ao lar, sem saber a palavra, muito menos o lugar. Chamo-lhe um pensamento, não uma ideia, não um plano, porque só na irrealidade se pode viver.
É assim: entro no carro e não esqueci nada. Meu irmão está ao meu lado, dirigindo, estranhamente solene. Ele está olhando diretamente para frente, como se dirigir fosse a única ação que conseguisse realizar com maestria e, por causa disso, não podia falhar. Seguimos juntos, pela quadra, pela rua, e quando chegamos à estrada principal, não recuo com a sensação da luz no meu rosto através do parabrisa. A visão dos parachoques sem fim não me incomoda, e noto apenas com indiferença os estranhos nas trilhas. O céu não parece muito grande; os semáforos, muito lentos. Tudo o que ouço é o rangido do volante, a borracha nos sapatos dele enquanto passa de um pedal para o outro.
Nós dirigimos para o norte, embora eu esteja tentada a dizer que é para o leste, porque parece que é de lá que vem o chamado. Nós dirigimos sem parar durante o dia, durante a noite. Norte e norte, uma estrada reta para fora e para cima. Na minha mente posso imaginar a estrada até certo ponto, e então vamos para onde não estivemos. As luzes do carro piscam, borradas contra a neblina do céu escurecido. A chuva cai, e para. Continuamos até que não haja nada além da linha suave das colinas, tão constante quanto um zumbido. E, ainda assim, vamos. Ninguém se cansa, o tanque não esvazia, a estrada não acaba. O sol nos cumprimenta, da direita para a esquerda. A lua toma o lugar e, com ela, as estrelas. Nós dirigimos através das estações, através das vidas, até que eu não sei se somos nós que nos movemos ou o mundo abaixo de nós.
Ainda não consigo ver o lugar onde paramos, nem sei como decidimos voltar. Porque, para mim, é assim que eu sempre fiz. É sempre a ida e nunca a volta. E então, como vou saber o que estou fazendo agora? É possível ir longe demais para voltar atrás? Virar à esquerda, completamente, encontrar-se no meio de um desconhecido que nos reivindica?
Eu me pergunto como seria, depois dessa longa viagem, retornar ao cascalho comum que conheço. O som dele sob os pneus, isso me tranquilizaria de novo? Quando cruzo a soleira da porta, quando desço as escadas, quando me deito na cama, encontrarei em mim um corpo renovado? As luzes estariam apagadas, exceto pelo abajur da cabeceira, e da minha janela eu veria o fio das luzes externas e me maravilharia, de novo, como pela primeira vez?
O pensamento dessa novidade me assusta, o potencial de estranheza onde o familiar deveria estar. Mas eu questiono se isso não seria pior: voltar e encontrar que nada mudou. A geladeira meio vazia, a caixa de som ligada, a roupa suja. Os números no jornal, as máscaras nos rostos. Aquele olhar dele se desvaneceu, olhando para o celular, para um vídeo na TV, para meu rosto com o olhar carinhoso. Sem que nenhuma distância me tenha tirado, muito menos, de mim mesma.
Ainda que me assuste, sei que, aqui, eu não preciso me preocupar, porque olha! Não passou de um pensamento, afinal.
