Por Beatriz Pagani
Eu começo pedindo perdão. Pedindo perdão porque, se pudesse, estaria naquela cama bagunçada com roupas, livros e fones de ouvido. Estaria lá, sentindo o cheiro do perfume barato misturado com o odor de suor e aroma de chiclete de menta, trabalhando, enquanto ela estaria sentado naquela cadeira e mesa velhas, resolvendo seus ofícios em um notebook que estava prestes a dar seu último suspiro. Ou, pelo menos, fingindo que trabalhava. Ela também fingia que resolvia os ofícios.
Tomaria aquele café fraco, quente e sem açúcar que tanto gostávamos. Que ela tanto gosta. Que ela tanto gostava. Estaríamos naquela cozinha toda encardida e manchada de óleo de girassol com cheiro de cloro. Bagunçada, mas limpa. Ela gosta daquela cozinha. Gostava. A bagunça era viva. A casa era viva. Nós vivíamos. Tudo era vivo quando eu a tinha por aqui. Mas, então, tudo morreu com ela. Porque eu a matei.
Ela pede perdão por tudo o que me fez passar. Por tudo o que continua fazendo, mesmo não estando mais aqui. Se soubesse de tudo o que iria enfrentar antes, de tudo o que faria para tê-la comigo, se soubesse que as coisas poderiam ter sido diferentes, que não estaria assim hoje… ela não mudaria nada, porque não se arrepende. Ela pede perdão sabendo que não se arrepende, mesmo que tenha errado. Ela pede perdão sabendo que faria tudo de novo.
Pede perdão pela melhor noite de nossas vidas, quando experimentamos vinho enquanto conversávamos sobre liberdade. Não. Conversávamos com nossas taças de vinho enquanto experimentávamos a liberdade.
Enquanto eu a experimentava, a liberdade.
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Cansaço. Parece que quando há algo de errado com nosso âmago, nossa vida de repente se equipara ao mito de Sísifo. Quem me dera ser Sísifo, pois, se Sísifo eu fosse, não carregaria tantos tormentos. Talvez, se Sísifo eu fosse, seria mais feliz, de apenas empurrar uma pedra gigante. Ela, provavelmente, é mais leve que tudo o que vem me atormentando.
Cansaço. Cansaço pela falta que aquele abraço me fazia. Cansaço pelo silêncio do apartamento sem o som daquela risada rouca. Cansaço por não poder mais ver aquele sorriso de dentes tortos. Aquele sorriso me deixava em um eterno cansaço. Cansaço de lembrar que eu nunca poderia ter todas essas coisas todos os dias da minha vida, mesmo que ela ainda estivesse aqui.
Mas ela estava aqui. Por um mísero momento, o mais curto que fosse, ela esteve. Ela vinha apertar o meu coração todos os dias. Segurá-lo a fim de deixar que meus sentimentos todos escorressem por entre seus dedos ásperos. Vinha soprar um ar quente nas minhas orelhas, um ar quente que gritava, me lembrando de que eu estaria sozinho assim que ela partisse; assim que eu a afastasse. Estaria só, porque ela nunca voltaria, mesmo que ainda estivesse aqui. Mesmo que algum dia ela realmente tenha estado.
O pedido de perdão nunca aconteceu. Nunca poderá acontecer. Eu não consigo, nunca conseguiria. Como poderia eu pedir perdão por tirá-la de uma prisão e, então, colocá-la em outra? Como eu poderia me jogar aos seus pés para me redimir por querer torná-la real?
Meu erro foi querer prendê-la. Foi colocá-la tão próxima de mim, buscar por uma fusão que jamais aconteceria. Porque ela não se prende. Querer vê-la quando eu deveria apenas sentir. Ela não está aqui e nunca mais estará.
Meu erro foi pensar que ela realmente se sentou naquela cadeira.
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Ela também nunca pediu perdão. Ela, diferentemente de mim, nunca se arrependeu. Mesmo que ela soubesse que estava à borda do cativeiro. Ela não se arrepende porque sempre soube que nunca esteve ali. Porque ela sempre soube que iria embora.
Eu ainda quero acreditar que a tive, mesmo que só a tenha vivido. Mesmo que eu a tenha tirado da prisão da minha mente e a transportado para uma cadeira que, diferentemente dela, ainda está lá.
Porque eu também não estou mais lá.
