Por Amanda de Oliveira

Lembranças de uma história. Foto por: Rosane Neri/ Arquivo pessoal.
Rosa era regada todos os dias pelas forças ancestrais de sua mãe, conseguia fazer mil e uma coisas, como toda mulher preta consegue. Cuidou de mim e de outros três filhos, meus irmãos. Teria cuidado de cinco, se Deus não quisesse Maria Aparecida ao lado dele com apenas seis meses. Ali tenho certeza que caiu uma de suas pétalas. Era corajosa, forte, meu pai trabalhava e levava o sustento para casa, mas quem colocava a comida na mesa era ela.
Não sei se conhecia as reais paixões da minha mãe, talvez nem ela mesma tivesse a chance de conhecer, por conta da sua dura rotina. Sabia que gostava de tricotar, mas tricotava para fazer roupas para seus filhos, era também uma necessidade. Desconheço seus gostos mais puros, seus desejos mais genuínos e seus sonhos mais sinceros.
Hoje entendo que o que ela fez por nós foram atos de resistência. Não sei qual o húmus que ela usava, mas era forte e resistiu. Forte o suficiente para conhecer duas gerações seguintes a sua, de cinco netos ao todo.
E só o húmus mais forte aguentaria o ano de 2006. Foi um ano duro, ingrato e difícil. Mais uma pétala caiu, quando enterrou outra filha. Rita, minha maior parceira, que tinha um brilho no olhar que iluminava quatro quarteirões à sua frente e o sorriso que contagiava e alegrava um estádio inteiro.
Exatos nove meses depois, perdeu o parceiro. Acho que aqui não foram as pétalas que caíram. Rosa murchou. Foi levado o homem com quem escolheu passar a vida, estava só. Não iria ver Deraldo deitado na rede aos sábados depois do trabalho, nem jogar baralho e ouvi-lo reclamar de cartas ruins, nem assistir à Fórmula 1 com ele domingo de manhã. Mesmo assim não sucumbiu. Não. Precisava cuidar de dois netos, que também tinham perdido a mãe, como ela, a filha.
Foi plantada em 1933 e levava os costumes da época, nos criou como a sua mãe a criou. Era ríspida. Para ela a mulher tinha que cuidar do homem, servir. Foi criada assim. Era notória a diferença de criação dada para filhas mulheres e para filhos homens. Foi criada assim. Não conversava comigo, também não conhecia meus gostos e desejos. Foi criada assim.
Por esses motivos, lembranças da infância por muito tempo foram um problema na minha relação com minha mãe. Não só, seu jeito tempestuoso, que eu também carrego, nunca facilitou diálogos.
Mas foi ela também quem me ensinou a oração do “Padre Nosso”, como chamava. Foi ela quem preferiu comer um pouco menos em vários almoços, para que eu comesse um pouco mais. Foi ela quem costurou para que eu tivesse uma blusa nova no primeiro dia de aula.
Os primeiros sinais da doença foram percebidos com os esquecimentos, que pareciam naturais. Até assustarem, como no dia em que uma labareda tomou conta da cozinha. O diagnóstico foi dado em 2015: minha mãe estava com Alzheimer. Acho que foi a forma que seu corpo resistiu depois de tantas perdas. E continuou resistindo por mais oito anos.
O quadro da doença evoluiu muito devagar. Fiz de tudo para que assim acontecesse, para que ela vivesse bem, sem perturbações.
Todos os diálogos que não tivemos quando mais nova, passamos a ter agora, com algumas outras dificuldades. No início as perguntas se repetiam incontáveis vezes, as respostas também. Descobri a paciência. Os banhos e depois trocas de fraldas tinham que ser monitorados. Descobri o cuidado. Os olhares passaram a ter outro significado. Descobri o amor.
Em um dos cursos que me inscrevi, ouvi que pessoas com essa doença buscam alguém para ser seu porto seguro. Me dediquei em ser essa pessoa. E fui. Eu era a pessoa com quem ela não tinha espinhos e quando apareciam, logo caiam para continuarmos a rotina, a nossa rotina.
Nos últimos anos vi a Rosa que eu conheci desenraizar e ir para longe. Mas ela ainda estava lá, sei disso. Sei disso toda vez que ela buscava por meus olhos para se acalmar. Sei disso porque me escolheu.
Gabriel García Márquez que me perdoe, mas não concordo com a sua frase: “a vida de uma pessoa não é o que aconteceu, mas sim o que ela lembra e como lembra”. Minha mãe não lembrava mais da sua vida, mas eu lembrava por ela.
