Conto escrito por Edusa
Maria descia e subia todos os dias no mesmo horário. o clima não era constante como ela. o sol queimava tudo, e quando o frio vinha quase não suportava o vento com as poucas roupas que tinha, a chuva era o pior, alagando casas e fazendo-a correr para pegar os móveis. Maria descia e subia todos os dias no mesmo horário com o mesmo sorriso. mas não era feliz.
desde nova, foi forçada a aprender que ser simpática fazia as pessoas não se importarem com ela. e era melhor não ser bajulada. perguntava e evitava falar, sorria e evitava chorar, acordava e evitava dormir, comia e evitava sentir fome, fugia e evitava ser vista. Maria descia e subia todos os dias no mesmo horário com a mesma máscara.
no trabalho, ela mal precisava se preocupar em não ser vista. já não era. limpava o tempo todo e nunca era incomodada. como a mãe. como a avó. como ancestrais que ela sabia ter vindo em navios negreiros. ela era igual a família em situação diferente. era a força dela. “podia ser pior” pensava enquanto era obrigada a passar e repassar. a mãe limpava e apanhava e foi esse ciclo até ser morta pela vassoura e o marido. a avó limpava e não recebia e apanhava e foi esse ciclo até ser morta pela fome e o marido. seus ancestrais tinham histórias piores. a situação dela era melhor. apenas, limpava. e sabia que seria morta por isso. mas Maria descia e subia todos os dias no mesmo horário com o mesmo pensamento.
um dia, deram ‘boa tarde’ para ela. Maria travou. nunca falavam com ela no serviço. ela respondeu quando a pessoa nem estava lá, baixinho. travou com spray numa mão e o rodo na outra. ficou parada por muito tempo. não soube bem o que pensava. mas pensava. pensava demais ao ponto de não conseguir se mexer. quis chorar. mas não sabia mais como fazer isso. virara uma máquina. ou algum utensilio qualquer. Maria descia e subia todos os dias no mesmo horário e dessa vez não sorria.
em casa, deitou-se no colchão que apenas sentia a madeira. Maria sempre se deitava e dormia. para não pensar. dessa vez, não dormiu. pensou na fome que sentia e conseguiu contar suas próprias costelas. pensou que talvez não fosse bom fazer apenas uma refeição por dia, mas era o que podia. pensou no quartinho mal iluminado e pequeno que vivia. pensou que seu problema de respiração devia ser isso, mas era onde podia morar. pensou nos estudos que nunca pode terminar. pensou nas histórias que nunca saberia. pensou nos livros em que ela nunca leria. pensou nos lugares que nunca visitaria. pensou no chuveiro quente que nunca teria. pensou no amor que nunca viveria. pensou na cabelereira que nunca poderia pagar. pensou na cafeteria que nunca iria. pensou até pensar demais. sentia uma dor dentro dela. fez careta como se fosse chorar. não saiu uma lágrima. chorou por dentro. Maria descia e subia todos os dias no mesmo horário e dessa vez sem dormir.
a falta de sorriso não passou despercebido pela favela. ninguém nunca a olhava, aliás uma garota magricela e sorridente não é desejável. mas uma garota com cara de marrenta, era atraente. Maria não se atentou com o olhar dos outros. não estava atenta a nada. só pensava como era injusto e não conseguia dar a palavra certa ao sentimento que crescia. parecia ódio. mas do que? parecia tristeza. mas do que? parecia injusto. mas quem era justo? Maria descia e subia todos os dias o mesmo horário e dessa vez não despercebida.
José. era o nome de batismo dele. mas ninguém sabia disso. Raul, era como todos os chamavam. lembrava rei, de acordo com ele. e ninguém ousava discordar. ele não descia e subia todos os dias. mas tinha que olhar tudo o tempo todo. se algo estivesse errado, ele descia e subia o canivete. era assim que resolvia e era assim que todos os respeitavam. Raul percebeu a diferença na garota. Raul achou que estava errado.
Maria trabalhou com carranca. o chefe brigou. e ela respondeu. Maria nunca respondia. mas já não se sentia a mesma. expôs seus pensamentos. xingou-o. era isso, concluiu, a culpa era do chefe. foi demitida. se viu numa situação pior que a anterior. talvez a culpa não fosse do chefe. de outro alguém. será que a culpa era dela? tentou chorar e não conseguiu. a culpa era dela, afinal. Maria subiu e não foi no seu horário e não sabia quando ia descer e não sabia quando ia sorrir.
Raul, a encurralou no meio da subida. maria não teve reação. pensou que era melhor morrer do que viver. mas descobriu algo pior que a morte. o corpo suado em cima dela a desesperava, mas estava travada. assim como quando recebeu boa tarde. talvez, sua vida não fosse melhor que a dos seus ancestrais. para ela, aquele momento durou horas, dias, meses, anos. dez minutos, ele havia acabado o serviço. ficou satisfeito. Maria ficou largada, com sangue ao seu redor, ainda sem entender o que ele tinha feito. sentia-se quebrada e vazia. talvez estivesse, pois, o sangue escorria entre as suas pernas como o seu ciclo tivesse chegado. tremia e não conseguia levantar. a única coisa que pensava era na fome que sentia. ficou lá e ninguém a olhou. Maria nunca mais desceria ou subiria.
Esta é uma história fictícia, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Ou não.
Eduarda Cardoso de Sá. Edusa.
