O projeto conhecido como QSMP (Quackity Survival Multiplayer) hoje possui oito criadoras de conteúdo

Por Lara Fagundes

Mulheres representam 69,8% dos gamers brasileiros segundo a Pesquisa Game Brasil (Foto: Divulgação/Instagram)

Inaugurado em março de 2023, pelo criador de conteúdo Quackity, famoso no Youtube e na Twitch por seus vídeos de jogos, o QSMP (Quackity Survival Multiplayer) surgiu com o objetivo de unir os maiores criadores de Minecraft, um dos jogos mais populares do mundo. Para isso, foi desenvolvido um servidor global com tradução simultânea, que funciona como um RPG (Role Playing Game) em uma ilha fictícia chamada Quesadilla.

No início, havia somente uma mulher entre quase 20 participantes convidados pelo próprio Quackity. A youtuber americana Jaiden Animations foi a única streamer feminina durante os dois primeiros meses. A segunda mulher convidada a participar do jogo foi a streamer suíça Baghera Jones, na metade de maio de 2023.

Desde o começo,  ficou claro que o servidor adiciona idiomas de acordo com o tamanho do fandom do jogo em cada país, após o início com o inglês e o espanhol. O Brasil possui a 4ª maior comunidade de Minecraft do mundo e isso inclui mulheres, mas, mesmo assim, nenhuma streamer brasileira foi adicionada até setembro, quando Gabi Cattuzo foi convidada para participar.

Com o público do QSMP tornando-se cada vez maior, a ausência de mulheres começou a ser mais evidente. Em agosto, foi anunciada a entrada de mais cinco criadoras de conteúdo, dos idiomas inglês e espanhol e, no início de setembro, uma brasileira. A entrada delas teve uma ótima repercussão entre os fãs, mas uma pergunta ainda persiste: por que demorou tanto?

A luta contra estereótipos

Segundo a Pesquisa Game Brasil (PGB), feita pela última vez em 2022, as mulheres representam 69,8% dos gamers brasileiros. Mesmo assim, o ramo dos videogames ainda é visto como um nicho masculino, o que dificulta o protagonismo feminino dentro de plataformas de jogos. Mulheres representam somente 30% da base de streamers; apenas 5% estão entre os principais criadores de conteúdo.

Segundo Isadora Lombardi, estudante universitária que começou a jogar na adolescência, essa falta de oportunidade é reflexo das desigualdades de gênero. “O mundo gamer sempre foi muito fechado para as mulheres, acredito que todas as coisas mais tecnológicas nunca foram direcionadas para elas, pois nunca fomos incentivadas a aprender a mexer. O primeiro contato que tive com vídeo games foi através do meu irmão e meus primos, então não enxergava como um entretenimento feminino.” 

Monalisa Rodrigues, gamer que iniciou no mundo dos jogos quando criança, também destaca a dificuldade de desvincular o videogame como algo estritamente masculino. “É de extrema importância que nós tenhamos mulheres em lugares de destaque nesse meio de jogos. Principalmente quando muitas de nós cresceram ouvindo que videogames eram coisa de homens, sendo proibidas de jogar ou até mesmo humilhadas e vítimas de machismo, enquanto jogávamos.”

Para as entrevistadas, as criadoras de conteúdo possuem a responsabilidade de representar as mulheres no meio dos videogames. “Quando comecei a acompanhar streamers femininas enxerguei que o mundo gamer podia ser muito mais plural e diverso do que eu poderia imaginar”, apontou Isadora.

A falta de representatividade de protagonistas mulheres dentro dos jogos também é um problema apontado por Monalisa. “Muitas vezes nós nos deparamos com personagens femininas sendo sexualizadas nos jogos ou sendo só a namorada do protagonista homem, a qual ele precisa salvar”, destaca. A gamer também falou sobre a importância de termos personagens femininas que não sejam vistas apenas como “o chaveirinho do protagonista”, cuja única utilidade é ser bonita.

Monalisa espera que a nova geração de meninas gamers possa crescer com referências de protagonistas femininas fortes nos videogames. Ela lembra que a maior parte dos jogos de hoje ainda objetifica mulheres e as coloca “em segundo plano”. “[Elas] lutam praticamente nuas ou com roupas super desconfortáveis, como em Mortal Kombat ou Resident Evil”, destaca. 

Segundo Isadora, além da constante sexualização, grande parte das personagens femininas são masculinizadas pelos criadores, quando ganham protagonismo. “Por exemplo, mulheres que lutam só podem lutar pois o pai ensinou, ou porque cresceu com muito irmãos mais velhos. Mulheres protagonistas não gostam de nada que é feminino, não perdem tempo com “mimimi”, não são vaidosas, e agem como um homem”.

Isadora critica o fato de a presença feminina ser sempre requisitada, nesse meio, para agradar e servir aos jogadores e personagens masculinos. “[É importante] colocar a mulher como uma personagem relevante, que não luta seminua para agradar o público, colocar as mulheres em um novo patamar de igualdade”, explicou.

Mulheres nas plataformas de streaming

Francine possui mais de 150 mil seguidores na Twitch (Foto: Divulgação/Instagram)

Julia Francine, streamer conhecida pelo user “oifrancine” na Twitch, conta que, quando começou a jogar, o ambiente dos games era mais machista. Como a maioria das meninas, também ouvia que videogame não era coisa de mulher.

Ver mulheres como representantes de jogos é algo muito importante, principalmente para a nova geração, destaca Francine. “Do mesmo jeito que eu gosto de ver personagens mulheres nos jogos, eu amo ver streamers mulheres na comunidade”.

Ela afirma que o maior desafio da carreira no streaming é a dúvida levantada, muitas vezes, sobre a competência das garotas para os jogos, além da sexualização dos corpos femininos. “A gente usa uma blusa de sair, um mínimo decote que seja, já é motivo para as pessoas julgarem e acharem que você não joga, só quer chamar atenção”.

Além disso, a diferença de tratamento entre streamers mulheres e streamers homens é algo que Francine considera bastante aparente na Twitch.

“Um exemplo clássico é o homem poder falar que namora e a mulher não. Aí você me pergunta: ‘por que não?’ Não são todos, mas há muitas pessoas que te assistem e te acompanham com esperança de ficar com você. Teve época que eu não falava que eu namorava exatamente para evitar que as pessoas parassem de me seguir ou me acompanhar em live. Hoje em dia, comigo, não acontece tanto isso. Mas tenho amigas que ainda reclamam de tal coisa”, relatou.

Fã de Tomb Raider, jogo que traz uma protagonista feminina forte (Lara Croft), Francine afirma que prefere videogames que tenham mulheres como personagens principais. Gosta de se sentir como “parte do jogo” e não se recorda de ter se interessado por algo com protagonismo masculino recentemente. “Acho que do mesmo jeito que eu gostava de ver desenhos animados com espiãs, e me sentir como elas, gosto de jogos com mulheres independentes.”

Francine disse que suas perspectivas para o futuro do streaming feminino no Brasil estão em Gabi Cattuzzo, mais conhecida como Bagi, uma das maiores criadoras de conteúdo da Twitch.

Recentemente, no final de setembro de 2023, Bagi entrou para a lista dos 10 canais de conteúdo em português com mais inscritos na Twitch, sendo a única mulher no ranking. Além disso, é a primeira criadora brasileira participante do projeto global de Minecraft, o QSMP.

“Ela é uma grande inspiração pra mim. Acredito que com ela crescendo, muitas outras mulheres consigam crescer também. Porque o que a gente mais sente diferença hoje em dia são os números. Há milhares de pessoas assistindo 1 streamer masculino, mas menos de 1/10 assistindo 1 streamer feminina”, concluiu.

Deixe um comentário