“Vamos comprar um poeta”, do escritor português Afonso Cruz, faz uma crítica ao consumismo da vida contemporânea
Por Beatriz Pagani

Imagem: Editora Dublinense
Após os cinquenta minutos líquidos de leitura, fechei o livro e guardei-o em minha estante a 90º e paralelo aos outros livros, todos patrocinados. Peguei meu computador, também patrocinado, e comecei a digitar exercendo 5N de força nas teclas. Infelizmente, não sou capaz e tenho pouquíssima disposição para calcular este valor. Justamente por isso, eu provavelmente não seria capaz de viver em um mundo como o de “Vamos comprar um poeta”, de Afonso Cruz.
Uma fábula distópica, lançada inicialmente em 2016, a obra é narrada em primeira pessoa por uma pré-adolescente de, em média, 13 anos. A garota, cujo nome não sabemos e, mesmo que soubéssemos, não faria diferença, decide pedir um presente ao pai. Não farei suspense, mesmo porque, o nome do livro já é bem transparente. Cercada por um mundo consumista, cujas descrições são todas baseadas em dados concretos, em números, cujos bens são todos patrocinados, a garota decide pedir ao pai que lhe compre um poeta.
Frases como “transacionar afetos”, “deixar miligramas de saliva no rosto”, “exponencialmente parvo” causam, em primeira mão, extrema estranheza. A escrita desta obra, de Afonso Cruz, tem esse poder. As características são todas dadas de maneira objetiva, ao ponto de que você já não mais sabe se está lendo uma ficção ou um manual de economia. As personagens não são caracterizadas por suas qualidades ou defeitos mais singulares, mas por quanto calçam ou pela quantidade de cabelo na cabeça. Esta linguagem adotada é fascinante, uma vez que causa certa quebra do uso da imaginação dos leitores para desenhar as personagens.
Personagens estas, vale dizer, consideradas pelos seus exponenciais produtivos. O ser humano, em “Vamos comprar um poeta”, não poderia ter sido mais relativizado. A verdade é que, nesta obra, ninguém é de fato um ser humano. Ora, primeiro que toda a classe artística é representada, em certo grau, por uma zoomorfização; poetas, artistas, escultores, pintores, são tratados como animais de estimação. A arte é um mero passatempo, uma distração. Como diria um poeta, uma transfiguração do universo. Então, em teoria, apenas os não-artistas são pessoas, certo? Engane-se quem chega a esta conclusão. De início, pensei que os personagens não teriam nomes. Mas não, o autor nos surpreende, mais uma vez, quando vemos que as pessoas não apenas não possuem nomes, mas são chamadas por números, inteiros ou não. Afinal, nomes são deveras subjetivos. Gosto, inclusive, da ideia de que numerais com vírgulas são considerados pomposos pela protagonista.
“Por acaso, o poeta acha que vegetais e frutas são o mais importante da pirâmide das necessidades?
Evidentemente que não.
É o que, então?
É a liberdade.” Pág. 28
Gostaria, por um breve momento, de pular para o fim. No apêndice, o autor nos apresenta uma frase de Hermann Göring, líder do Partido Nazista: “Quando ouço a palavra cultura, saco do revólver”. Durante toda a obra, Afonso Cruz trata do tema da desvalorização da arte e da cultura de maneira leve, quase cômica, para, de repente, querer fazer o leitor se emocionar com a súbita realização de como o mundo de “Vamos comprar um poeta” não é tão utópico assim. Um mundo moderno cuja liberdade proporcionada pela arte se desmancha no ar, e nós somos os responsáveis por isso.
A queima da biblioteca de Alexandria ou os R$13 bilhões de perda de patrimônio cultural na Ucrânia estimados pela ONU. Não é necessário ir tão longe, contudo. A Biblioteca de Brasília, incendiada em 2014, ou o Museu Nacional, que teve o mesmo fim, e que começou a ser reconstruído apenas 3 anos depois. O fechamento de livrarias brasileiras, como a Saraiva e a Cultura, em certos locais do país. Se nossa protagonista vivesse neste mundo, talvez ela não se chocaria, afinal.
“Ele falava com os livros, como se fossem amigos.” Pág. 47
Nesta mesma linha, é ainda mais interessante quando, mesmo tão desvalorizada, a arte é usada para mover a economia. Em um mundo consumista, tudo é bem que pode ser revertido em lucro, e a arte não escapa. É uma sociedade na qual a aquisição de bens, a prosperidade financeira e o conhecimento econômico são a base da vida humana, e a liberdade precisa encontrar seu lugar nos poucos sonhadores restantes. Como diziam os parnasianistas, a arte tem valor em si mesma; o pragmatismo não é seu fôlego de movimento. Mas parece que isso não é suficiente.
“A cultura não se gasta. Quanto mais se usa, mais se tem.” Pág. 60
Gosto da evolução da linguagem do livro, principalmente como ela reflete a evolução da própria personagem. De início, me senti perdida, senti um pouco de dificuldade em compreender o que estava sendo dito e precisei voltar a leitura algumas vezes para entender a cena e ser capaz de montá-la em minha mente. Ao meu ver, isso apenas escancara o quão necessária é a linguagem poética. A personagem, ainda, é extremamente carismática, muito identificável, mais para aqueles cuja alma se alimenta da arte.
A leitura, cheia de referências impecáveis, não dura mais de uma hora para aqueles que lêem rapidamente, que querem uma distração. Para quem gosta de parar para refletir, contudo, deve levar boas três horas. No fim, meus olhos eram como a janela do quarto do poeta, aquela com vista para o mar.
“Um poeta é como quem sai do banho e passa a mão pelo espelho embaciado para descobrir o seu próprio rosto”. Pág. 76
Afonso Cruz é um autor português nascido em 1971. Escreveu mais de 30 obras, dentre as quais estão ensaios, ficção, romances, crônicas, não ficção e, ainda, uma enciclopédia inventada. Algumas de suas obras mais notáveis, além de “Vamos comprar um poeta”, estão “Nem todas as baleias voam” e “Para onde vão os guarda-chuvas”. A versão do livro aqui analisada foi publicada pela editora dublinense, em 2023.
Título: Vamos comprar um poeta
Autor: Afonso Cruz
Editora: Dublinense
Preço: R$32,20 (Amazon)
