Conto escrito por Edusa
Em frente à maternidade, dentro da caçamba, com as pernas balançando e o choro rouco, ela ainda se encontrava lá. Envolta de lixos e carniças, o corpo pequeno coberto com um pano velho e ainda sujo de sangue se encontrava lá. Quem a pariu, não estava; não estava lá fazia tempo; não se importava há mais tempo ainda.
Uma garota passou na frente. ela pensava nos problemas de sua própria vida e andava para ver se conseguia abandoná-los em alguma esquina. Encarou o hospital. Andou uma quadra e teve um pensamento intrusivo. e se. Voltou. Seu Jorge estourava em seus fones quando começou a vasculhar a caçamba. pausou a música e escutou. o ruído rouco de um neném é inconfundível. acalentada nos braços da garota, a neném se acalmou. com a recém-nascida no colo, a garota se desesperou. Não tinha nem leite em casa. “ainda bem, porque ela nem pode”, pensou. Mal tinha comida. Mas poderia arranjar aveia e fazer como os antigos. “com certeza, vai soltar o intestino”, pensou. Mal tinha dinheiro para o aluguel, para fralda era impossível. Mas poderia enrolar panos velhos e fazer como os antigos.
Numa cidade do interior, com gente que prioriza o sono no horário correto e sem serviços 24 horas, a garota levou a garotinha para casa. o alívio momentâneo da criança se foi e o choro veio. Seu Jorge ainda tocava repetidamente no fone. a garota começou a cantar e ela se acalmou. Carol, Carolina. A garota gostava de como soava Carolina, mas não Carol. A garotinha virou Lina. Será que lembraria de seu nome?
Uma noite longa numa casa curta, foi como passaram. De manhã, Lina se foi. Os problemas continuaram. Os anos se passaram, os problemas se transformaram, mas continuavam. Quando se via em dificuldade, a garota se lembrava de Lina – que não deveria lembrar dela. Pensou em como devia viver e a garota rezou que tivesse uma vida melhor que a dela. nem acreditava em deus, mas acreditava em Lina.
A garotinha foi adotada e se tornou uma mulher de família religiosa e conservadora. casou-se obrigada. vivia porque tinha medo da morte. mas às vezes. às vezes que se tornava sempre. pensava na morte com um desejo. desejava quando tinha tanto afazer doméstico que não conseguia ler – o que era todos os dias; desejava quando olhava um casal apaixonado na rua – o que era todos os dias; desejava quando o corpo suado do marido a sacudia na cama – o que era todos os dias; desejava quando chorava rapidamente no banho – o que era todos os dias. a mulher tinha vontade de se tornar uma garotinha, algo que nunca soube se realmente foi.
um dia cansou. cansou da repetição, de se sentir um objeto com sentimentos que outros manipulavam. pegou uma mochila com poucas roupas, dinheiro e se foi. cortou suas saias e foi ser livre em qualquer esquina.
Essa. Essa seria uma boa história para Lina. Um começo, um meio e um fim. Porém. Lina nunca deixou de ser uma garotinha. Lina nunca saiu da caçamba. A garota que a encontrou, nunca a encontrou de verdade. Vasculhou os lixos como uma maluca, e seguiu em frente pensando na vida da garotinha. Lina, a neném que nunca existiu. Algum tempo depois, a garota voltou à caçamba. queria um fim, como o começo que Lina nunca teve. Com uma lâmina, se afundou onde a história começou. Ninguém ouviu seu choro.
Esta é uma história fictícia, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Ou não.
Eduarda Cardoso de Sá. Edusa.
