Vetada pelo Presidente, nova legislação sobre terras indígenas pode ser o estopim para a legalização do genocídio cultural dos povos originários.
Por Amabile Zioli

Em 2009, o julgamento da Petição 3.388 pelo Supremo Tribunal Federal questionava a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Durante o parecer, o termo “Marco Temporal” foi cunhado como critério de julgamento, onde dizia que os povos indígenas poderiam demarcar apenas as terras que já ocupavam ou disputavam até a data de 5 de outubro de 1988, quando a atual Constituição Federal foi promulgada. A citação já foi o suficiente para a direita adotar o termo como doutrina.
A questão que envolve a tese teve seu ápice em 2017, quando a Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu um posicionamento estabelecendo alguns critérios para a demarcação de terras indígenas e definiu o marco temporal como um deles.
A última sessão que debateu o assunto foi em setembro de 2021, e não havia previsão de novas reuniões até este ano. No dia 7 de junho de 2023, a pauta voltou a ser analisada pelo STF em decorrência da disputa entre o povo Xokleng e o Estado de Santa Catarina, mas não se restringiu ao caso específico. Desde a data do retorno da votação, a tese foi rejeitada pelo Supremo mas o fato não pode ser considerado como uma vitória para os indígenas e ambientalistas.
Apesar de ter sido descartada pelo STF, um projeto de lei que visa a instauração do marco temporal através da legislação foi aprovado pela câmara e pelo senado. No entanto, em 20 de outubro, o presidente Luís Inácio Lula da Silva vetou a tese com a justificativa de que iria contra o interesse público e acarretaria em inconstitucionalidade, por contrariar direitos já previstos na constituição.
Argumentos usados
Como justificativa para a aprovação do critério que dificulta a demarcação de terras indígenas, o ministro do STF Nunes Marques afirmou que haveria uma expansão ilimitada para áreas já incorporadas ao mercado imobiliário no país, de acordo com a Agência Câmara de Notícias.
Outro argumento frequentemente utilizado por grupos favoráveis à tese é o descumprimento da Constituição, que, em seu artigo 231, diz que os indígenas têm “direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam” a fim de manterem suas tradições, e, de acordo com os ruralistas, o artigo não está sendo cumprido, pois, atualmente, os povos indígenas estão integrados em nossa sociedade e não exercem mais tais costumes.
O desenvolvimento econômico do país também foi vítima do pensamento retrógrado e capitalista, em sua essência: ainda de acordo com o grupo ruralista, as terras que atualmente são propriedades indígenas poderiam estar recebendo “melhor” uso, para a plantação de grãos, por exemplo, o que impulsionaria a economia nacional.
É claro que dizer que o marco temporal trará segurança jurídica ao processo de demarcação de terras, como apontado por Nunes Marques, é, no mínimo, ignorância. Uma tese que ameaça a sobrevivência e conquistas de diversas comunidades indígenas não pode ser vista como benéfica, a não ser para grandes corporações, e, claro, para a bancada ruralista.
Segundo dados da FUNAI, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas, povos originários ocupam em torno de 11,6% do território brasileiro, e, com a aprovação da teoria, tais áreas, já demarcadas e pacificadas, poderiam se tornar alvo novamente do caos judiciário. Analisando sob a ótica colonialista que prepondera na nação desde seus primórdios, a motivação é evidente: a desqualificação de um direito que, segundo a própria Constituição, é anterior à formação do próprio Estado. A marginalização de um grupo originário ainda é inerente à parte da população que se denomina “civilizada”.
As forças conservadoras e os setores retrógrados da sociedade brasileira estão empenhados em conseguir um mecanismo legal para obter a retirada forçada dos povos indígenas de suas terras. Cabe à sociedade como um todo decidir sobre o futuro dos povos originários e a sobrevivência de sua história e tradições.
