“Nanette” de Hannah Gadsby, é uma história com começo, meio e fim, que reflete sobre machismo, homofobia e arte de forma crítica e irônica.

Por Marina Barrelli de Carvalho

Poucas pessoas imaginam que é possível chorar assistindo um show de stand-up comedy. Muito menos poderiam acreditar que é possível rir e chorar em um desses espetáculos, que por vezes conseguem ser tão entediantes e nada engraçados – graças aos “gênios” do tal humor sem filtro. Ainda que seja difícil de enxergar um cenário desses, a possibilidade está em um nome: o espetáculo “Nanette”, de Hannah Gadsby.

Nascida na Tasmânia, pequena ilha que pertence ao território australiano, Hannah faz humor sem ofender minorias ou atacar indivíduos específicos. Aliás, faz o contrário disso: questiona o engrandecimento de grandes ídolos problemáticos, toca em assuntos delicados, como homofobia e machismo, de forma crítica e cômica, e divide com seu público histórias pessoais dramáticas, possibilitando uma proximidade que, sim, produz muitas lágrimas.

Hannah lançou o poderoso “Nanette”, seu primeiro show especial na Netflix, em 2018 e, à primeira vista, parecia um stand-up como qualquer outro – mas apenas nos seus primeiros quase 20 minutos. 

De início, a comediante fala brevemente sobre como foi viver em uma cidade pequena sendo lésbica, considerando todos os julgamentos e dificuldades, e brinca sobre a relação com sua mãe – que não a acolheu de imediato, depois de saber que era homossexual. Também fala como se sente deslocada dentro da comunidade LGBTQIAP+, e relembra de quando sua avó perguntou quando arrumaria um namorado – se dando conta que se esqueceu de contar para sua avó que é lésbica. Outra marca de Gadsby, que também aparece nesse começo do show, é a sutileza com que ironiza falas misóginas e homofóbicas tradicionalmente ditas por homens, como “Mulheres não são engraçadas” ou “Por que não ri um pouco? É uma lésbica por acaso?”. 

O show tem uma “virada” quando Hannah, espantando ela mesma, diz: Acho que tenho que largar a comédia. A fala segue explorando o início de sua carreira, que segundo ela mesma, foi construída com um humor autodepreciativo. Esse segmento, em específico, inaugura o que será então o foco de “Nanette” e que pode ser resumido com uma frase repetida diversas vezes por Gadsby ao longo do espetáculo: “Eu preciso contar minha história de forma correta, pois você só aprende com a parte em que foca de uma história”. 

Assim, entre críticas ácidas sobre as construções tradicionais de gênero, reflexões sobre a romantização do sofrimento de artistas em prol da arte e questionamentos assertivos sobre reputações inabaláveis de celebridades, – em especial de Picasso – conhecidas por serem abusadoras e misóginas, “Nanette” é um show de stand-up que faz o público rir enquanto repensa conceitos que podem – ou até devem – ser desconstruídos.

Além disso, é um espetáculo intimista, já que desde os primeiros minutos, Gadsby define com uma única frase que irá contar sua história. Se brinca sobre a relação com a mãe, desde que se assumiu lésbica, relembra, de forma emocionante, o momento em que ela lhe pediu desculpas por ter tentado a moldar para ser que não era. Se primeiro brinca com o fato de ter se esquecido de contar a sua avó sobre sua sexualidade, em um momento vulnerável e cru explica que esse “esquecimento” é na verdade devido a homofobia que internalizou desde que se entendeu como lésbica enquanto vivia em uma comunidade opressiva. “Não me assumi para minha avó ano passado pois ainda tenho vergonha de quem sou”, explicita Hannah.

Em um espetáculo metalinguístico, Hannah Gadsby ensina com “Nanette” o que é a tensão de viver como o “diferente” do padrão imposto e como utilizou a comédia para consumir essa tensão e conseguir a punchline de uma piada. Como seu diário pessoal, Gadsby consegue mostrar sua história de superação, de quem entende que não deve ser o alívio cômico de uma audiência – e nem dela mesma.

Diferente de qualquer outro show stand-up, “Nanette” é uma história com começo, meio e fim, tal qual Hannah deseja. É recheada de críticas ácidas, inteligentes e cômicas, é uma reflexão particular e íntima e é o desejo de uma mulher em ter sua história ouvida.

Hannah finaliza o show falando na importância em ver o mundo por diferentes perspectivas, ironizando que apenas nesse sentido Picasso estava certo. O ponto conector seriam as histórias e as diferenças que cada pessoa representa no mundo. “Rir não é o melhor remédio. O que cura são as histórias” finaliza Gadsby.

“Nanette”

Show de stand-up comedy

Hannah Gadsby

Disponível na Netflix

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