Por Rafael Oliveira |
A noite começara há pouco. Como as estrelas esparsas, as luzes da pista de caminhada começam a acender. É finzinho de uma tarde de sexta no Jardim Colonial. Enquanto os vestígios vibrantes do sol caramelizam no céu, a temperatura abaixa e o número de passos dados no concreto aumenta.
Estudantes apressados, ciclistas e corredores tomam conta da beira da rua. Buzinas de carro e conversas de caminhantes abafam lentamente o piado dos pássaros. No meio de tanto movimento, uma passada chama a atenção. Não corre nem parece ter pressa. Pelo contrário: anda devagar pela calçada por entre a grama.
É só mais uma noite comum para Ana Maria Novaes Muniz, bancária aposentada de 62 anos. Com seu carrinho de feira lotado de galões de água cheios até o gargalo, rega as plantas da Avenida Luíz Edmundo Carrijo Coube como de costume.
Ana, como é chamada pelos colegas de bairro, é natural de Martinópolis, município de cerca de 24 mil habitantes. Solteira e sem filhos, faz 2 anos que não vê a irmã, que vive em sua cidade natal. Mesmo com saudade, ela admite não poder viajar: prefere ficar e dar atenção a seus gatos e, é claro, suas plantas.
Há 5 anos, ela dedica boa parte do seu tempo às mudas que plantou nos 500 metros de canteiro da avenida, desde portão 1 da UNESP até a base operacional do SAMU. Goiabeiras, amoreiras e ipês de todas as cores recebem seus cuidados quase que diariamente.
A maioria delas foi plantada em 2018 após se decepcionar com o resultado das eleições. Descontente, ela aderiu à medida como ato de protesto.
– Como eu já imaginava o que aconteceria com o país, resolvi plantar esperança como uma forma de resistência simbólica à destruição que sabia que viria.
Puxando seu carrinho de rodas desgastadas, ela vai até a universidade, enche os galões e sai avenida afora, não só regando, mas checando se estão saudáveis. Caso precisem de adubo, Ana aplica restos orgânicos como cascas de banana e borra de café que consegue com os vizinhos. Ela também martela estacas para que elas não sejam pisadas e se certifica que formigas e outras pragas fiquem bem longe.
Cada flor ou broto é uma comemoração.
– Fiquei muito feliz um dia desse ano depois de uma chuva quando fui mexer nas plantas e encontrei uma minhoca. É um sinal de que a terra, que não é muito boa, está melhorando.
Ela fica ali por horas, às vezes de manhã e de noite. De planta em planta, de história em história, de filha em filha. Frequentemente é interrompida por alguém puxando assunto. Ela se recorda de pessoas que conheceu durante essa jornada.
– Um dia uma senhora me parou para me dizer que daqui a alguns anos, quando eu não estiver mais aqui, alguém vai passar e dizer: “Tinha uma senhora que plantou e cuidou de tudo isso”. Eu achei tão bonito da parte dela. Já conheci várias pessoas que guardo no meu coração, mas também algumas que não quero proximidade.
E por que você continua vindo aqui todos os dias, pergunto.
– É a minha missão. Eu amo vir aqui e cuidar delas. Independente das outras pessoas, isso me faz um bem danado. Dessa forma eu sinto que não estou vivendo só para mim, sabe? Eu penso que estou deixando alguma coisa boa para o lugar onde moro.
Sobre as flores, ela compartilha sua preferência.
– Ah, eu gosto dos ipês, amarelos ou brancos. Na época de floração, mesmo ainda estando pequenos, eles deixam essa rua mais colorida, viva e perfumada.
Ela pensa um pouco.
– Mas eu gosto muito dos pés de amora também. Primeiro porque eu adoro amora e segundo porque um dia desses vi um casal com uma criancinha de colo colhendo as frutinhas de um pé que plantei. A cena me encheu de alegria, sabe?
E vem um sorriso enorme.
– Sinto que, de alguma forma, ajudei a criar esse momento tão bonito em família.
As plantas logo voltam a lhe pedir cuidados e ela prontamente as atende.
– Preciso acabar logo, ainda falta bastante coisa.
E ela vai mais uma vez. Cuida da próxima e da próxima até que termina.
– Amanhã venho de novo.
Puxando seu carrinho, dessa vez com galões vazios como a pista de caminhada depois do horário de pico, ela sai cansada, mas com a sensação de dever cumprido.
Ao chegar em casa, é hora de cuidar de seus 10 bebês, como costuma chamar. Pedrita, Isaac, Yasmin, Ventania, Miúcha, Mimão, Lucy, Rajinha e Juma, a caçula. Se sobrar tempo, ela ainda vai sair para alimentar os gatos da rua.
– Se sou feliz? Não acredito que a felicidade seja algo permanente. Eu me sinto em paz comigo mesma.
Desde que leu um poema de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, Ana adota os seguintes versos como lema de vida.
“Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas
