A criminalização não impede o procedimento, mas causa danos às mulheres e custos para o sistema de saúde
Por Raquel Freire
O aborto faz – e sempre fará – parte da lista de assuntos que instigam múltiplas polêmicas na sociedade. Para além do fato de que o tema exige certa delicadeza ao ser discutido, ele envolve questões científicas, éticas, filosóficas, morais e religiosas, fazendo com que falar sobre não seja uma tarefa simples. Entretanto, o tópico tem feito parte do debate público ao passo que, na penúltima semana do mês de setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar a ação que tenta descriminalizar o aborto feito por mulheres com até doze semanas de gestação.
O procedimento é entendido pelo Código Penal brasileiro como crime contra a vida, prevendo que tanto a mãe quanto os demais envolvidos possam sofrer penas privativas de liberdade. A lei atual, no entanto, autoriza a realização do aborto até a décima segunda semana de gestação se a gravidez é decorrente de um estupro; se o feto é anencefálico, ou seja, não terá condições de desenvolver um cerébro e sobreviver fora do útero; ou se há riscos de vida para a gestante. Caso a maioria dos ministros defendam a alteração deste regulamento, seguindo os passos da ministra Rosa Weber, o STF definirá que nenhuma pessoa envolvida no processo (quando ocorrido dentro do período estipulado) poderá ser processada ou punida.
Afirmar que criminalizar a interrupção voluntária da gravidez é uma questão extremamente grave de saúde pública não é exagero ou novidade. O relatório da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021 mostra que uma em cada sete mulheres, com idade próxima aos 40 anos, já fez, pelo menos, um aborto no Brasil – o que leva ao cálculo de que ocorrem cerca de quinhentos mil procedimentos por ano. Em um levantamento realizado pela revista Gênero e Número acerca de mais de 1,7 milhão de internações registradas no Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS) como gravidez que termina em aborto, o país apresenta uma morte a cada vinte e oito internações por falha na tentativa de realizar o procedimento.
Dentre as categorias “hospitalizações por aborto espontâneo”, “aborto por razões médicas e legais”, “outros tipos de aborto”, “aborto não especificado”, “outros produtos anormais da concepção”, “gravidez ectópica ou molar” e “falha na tentativa de aborto”, o risco de óbito que a última possui é 140 vezes maior do que todas as outras juntas.
Assim, é fato que a criminalização afasta as mulheres dos serviços de saúde. Em decorrência de todos os estigmas presentes na sociedade perante o assunto, as gestantes temem pelo abandono e pela negligência por parte da equipe médica que realizaria o atendimento, recorrendo a clínicas clandestinas ou a medicamentos abortivos sem orientação médica ou sem eficácia comprovada.
Desse modo, a descriminalização se mostra como uma ferramenta fundamental para que haja um descortinamento do tema, que sempre foi tratado sob a ótica criminal e punitiva. Essa ação aumentará as chances de que os melhores recursos e técnicas sejam incorporados no tratamento das mulheres em situação de aborto, diminuindo as barreiras entre elas e o acesso às unidades de saúde, o que pode salvar suas vidas.
Além disso, é importante ter em mente que a legislação brasileira que pune o aborto é antiga. Decerto, um dos principais objetivos de uma lei é corresponder aos costumes da sociedade na qual ela vigora. No entanto, obrigar a permanência de uma gestação por meio da lei é uma forma de controle do Estado sob o corpo da mulher quando, na teoria, a liberdade é assegurada a todos os cidadãos. E desconsiderar a possibilidade de que essa lei possa ser violada é fechar os olhos para inúmeras complicações na saúde de milhares de mulheres, especialmente daquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade.
Em suma, criminalizar este procedimento em um cenário onde a presença feminina se torna cada vez maior é, além de violar os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, ignorar uma prática que ocorre com frequência.
Sabe-se que fazer do aborto induzido um crime não é uma forma eficaz de impedir sua ocorrência. Urge, então, a necessidade de tratá-lo como um tópico intrínseco à sociedade atual, como também a de avaliar alternativas que façam com que ele apresente o menor número de contratempos, e a descriminalização é o caminho para tal. Mais que isso: é preciso garantir o acesso ao aborto legal e seguro nas unidades de saúde pública. Existe, hoje, um sistema de saúde nacional estruturado, com especialistas, organizações feministas e políticas públicas prontas para acolher e oferecer o melhor atendimento possível. Portanto, o Brasil está mais do que preparado para falar sobre a descriminalização e a legalização da interrupção voluntária da gravidez.
