Elaborado por constituintes de maioria centro-esquerda, projeto da Lei máxima do país foi rejeitado pela população em 2022
Por Amanda Trentin
Em 2023, a memória dos 50 anos da ditadura chilena foi resgatada. A importância de relembrar o passado do país não reside apenas em exaltar a resistência daqueles que foram reprimidos com perseguições, mortes e torturas praticadas pelo governo pinochetista. Significa também mencionar a relevância da historicidade como ferramenta auxiliar no reconhecimento e avaliação de medidas e decisões que são propostas em um meio social.
Nos 17 anos de autoritarismo chileno, entre 1973 e 1990, a Constituição assegurava ao tenente-coronel Augusto Pinochet a impunidade frente ao exercício da repressão. A doutoranda em História Social pela FFLCH-USP, Aline Fernanda Maciel, que pesquisa História Contemporânea, com ênfase na América Latina, afirma que o legado dos impactos da ditadura está fundamentado no projeto constitucional elaborado na década de 80, a partir da institucionalização do neoliberalismo.
Augusto Pinochet, ditador chileno entre 1973 e 1990
Aline diz que “há uma perda de vários direitos sociais, trabalhistas, sindicais. É um processo de despolitização social. Há um Estado subsidiário, ou seja, ele só entra para prover aquilo que a sociedade civil não consegue. Isso significa uma redução muito grande das políticas públicas”.
Ela explica que tal sistema propôs uma esfera de fragilidade política que prejudicou principalmente a classe trabalhadora, uma vez que, durante esse período, mazelas como a pobreza e a desigualdade cresceram em uma inclinação significativa.
Isso porque, através da implantação das propostas neoliberais, o Estado chileno assume um comportamento de responsabilidade mínima diante do povo. Como exemplo de consequência dessa dinâmica, observa-se a privatização da saúde, educação e transporte – serviços básicos que são garantidos à população em um Estado social de direitos.
A continuidade dessa postura estatal, que se mantém desde a ditadura, implica no endividamento do público chileno, o qual precisa, então, recorrer aos serviços privados para assegurar o acesso àquelas garantias que deixam de ser tuteladas pelo Estado.
Aline menciona o movimento estudantil de 2019 como produto do descontentamento dos civis acerca do modelo neoliberal. “Há uma revolta que começa primeiro com os estudantes contra o aumento da passagem de metrô e vai tomando proporções maiores. É um movimento muito difuso, então as pautas vão desde autodeterminação dos povos originários e os direitos trabalhistas e sindicais. Esse processo culmina na Assembleia Constituinte”, explica.
Ainda sob a argumentação da historiadora, a Assembleia Constituinte obtém um caráter simbólico ao relacionar-se com a representatividade de grupos sociais marginalizados. Ela é presidida por uma mulher indígena, há a paridade de gênero, a participação de povos originários, como os Mapuches – os mais numerosos do Chile – e reivindicação de uma Constituição plurinacional.
Acadêmica Elisa Loncón, a primeira mulher originária a presidir a Constituinte em 2021
Contudo, tais exigências não agradaram a direita política. Aline comenta que esse setor desconfiava do requerimento da plurinacionalidade e, por isso, desenvolvem uma campanha massiva de deslegitimação da proposta da nova Constituição. A campanha afirmava, equivocadamente, que o cumprimento da solicitação daquela demanda separaria o Estado da sociedade, enquanto, de fato, significa o reconhecimento dos povos originários através da expropriação das terras indígenas que aconteceram, majoritariamente, na ditadura.
“Uma das demandas principais dos povos indígenas é a restituição das terras usurpadas, a preservação dos bosques nativos que são sagrados para esses povos e estavam nas mãos de empresas privadas, as quais os destruíam e desrespeitavam a fonte de subsistência material e espiritual desses povos”.
Em consonância com a fala de Aline, o professor de História da América Latina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), José Alves de Freitas Neto, esclarece que “a luta que se tinha era por dignidade. Essa luta por dignidade significa ter direito a ser quem é, a ser como é, a pertencer a um corpo político que a sociedade chilena, da maneira como está, não contempla”.
O projeto Constitucional, votado em plebiscito no dia 04 de setembro de 2022, foi elaborado por constituintes de maioria centro-esquerda e apresentava argumentos para que o Estado deixasse de ser o subsidiário e passasse a ser o social de direitos, com o intuito de afirmar o acesso a serviços sociais básicos e de forma gratuita. Ele seria também ecológico, paritário, certificaria os direitos das comunidades originárias e os direitos sexuais e reprodutivos.
A conclusão da votação foi o “rechazo”. Isto é, a Constituinte foi rejeitada. A doutoranda justifica a rejeição ao expor a grande mitificação de informações por parte da frente direitista. “Havia informações enviesadas, com muita distorção”.
Após a rejeição dessa Constituinte, uma nova formação de membros foi requerida para moldar uma proposta de Constituição atualizada e que será votada, também em plebiscito, no final do ano de 2023.
Segundo o professor José Alves, caso a nova Constituinte seja rejeitada, “haverá uma crise política, no sentido de ter que convocar uma nova Assembleia, considerando que o que está declarado é que a Constituinte atual não tem vigor para poder sustentar a nova realidade do Chie”.
Em contrapartida, se houver a aprovação, isso significará que “os movimentos sociais continuarão a cobrar pelos seus direitos”, declara.
