Em entrevista ao Contexto, o jornalista da Globo News Ariel Palacios fala sobre a crise da constituição chilena e o combate às fake news
Por Amanda Trentin
No Chile, o governo vigente, de Gabriel Boric, enfrenta um momento sensível quanto ao âmbito político devido à insatisfação popular com a Constituição. A Carta Magna em vigência obedece a regulamentações neoliberais instituídas no país na década de 80, com a ditadura de Augusto Pinochet.
Ela também retoma a historicidade de um país que, entre 1973 e 1990, esteve mergulhado em repressão e autoritarismo. Houve perseguições, torturas e mortes de civis que resistiam ao regime, pois lutavam a favor da democracia e de um Estado capaz de prover serviços básicos como, educação, saúde e transporte, em contradição com os princípios neoliberais implantados no período pinochetista.
Após 50 anos de ditadura, jornalistas encontram uma oportunidade de relembrar o passado através da efeméride, em 2023. Por meio desse resgate, o jornalismo é capaz de investigar e derrubar mitos, como afirma Ariel Palacios, correspondente brasileiro da Globo News em Buenos Aires.
Ariel Palacios, correspondente brasileiro da Globo News em Buenos Aires
Palacios, em entrevista exclusiva ao Contexto, comenta que a Constituição que regia o regime de Pinochet era monolítica e, portanto, sua aplicação no momento pós-ditadura não servia às reivindicações da população, que exigia a democracia.
A aclamação dos setores populares pela mudança da Constituição se reflete em 2021 e 2023. No primeiro ano, os constituintes eram de maioria centro-esquerda e propuseram uma Constituinte moldada em conceitos de paridade de gênero, ecologia, plurinacionalidade, segurança sobre os direitos dos povos originários e direitos sexuais e reprodutivos. Em 4 de setembro de 2022, o resultado do plebiscito para a adoção das medidas definidas na nova Constituinte foi a rejeição, ou, o “rechazo”.
Segundo Palacios, esta Constituinte era formada por alguns aspectos de vanguarda e a população chilena não apoiou essas ideias. Por isso, a próxima Constituinte deveria ser um conjunto de medidas que se equilibre entre a antiga Constituição e características progressistas.
Leia a seguir a entrevista exclusiva com Ariel Palacios.
Quais foram as principais diferenças observadas entre a propaganda política de Pinochet e a propaganda política que aconteceu na transição para a democracia, que começou com o Patrício Alywin?
No governo Pinochet, era uma coisa monolítica, era só a voz do Pinochet. Com a volta da democracia, começa-se a ouvir as diferentes opiniões, os diferentes partidos políticos, havia um pluralismo muito interessante ali. Quando volta a democracia num país, acaba florescendo os meios de comunicação. Acaba havendo um consumo maior de informação nesses momentos.
A segunda Constituinte, que está sendo produzida no ano de 2023 para ser votada no final do mesmo ano, apresenta poucos membros da população originária. Qual está sendo a movimentação desse setor popular no Chile para que eles possam ser ouvidos?
A mobilização existe desde 2005 e 2006 e cresceu muito no estalido social de 2019 e continuou de lá para cá. Com a primeira Constituinte houve muita expectativa daquilo se concretizar por meio de novos artigos dentro da Carta Magna que desse mais autonomia aos povos originários, especialmente os Mapuches, que são a maioria. Com essa nova Carta Magna, não há quase nada relativo à questão dos povos originários. Ao mesmo tempo, houve uma certa calmaria desses setores que agora estão se mobilizando muito menos do que há dois, três ou cinco anos. É um momento de inflexão.
Em uma entrevista dada a Globo News, você afirma que a rejeição da Constituição votada em plebiscito, em 04 de setembro de 2022, não te surpreendeu. Por quê?
Eu acho que um lado é esse das fake News, mas por outro lado, embora eu achasse a Constituição muito interessante, minha mentalidade não era da maior parte dos chilenos. Os chilenos achavam que era vanguarda demais. Levando em conta como o público chileno é muito centralista – não existe essa cultura de estados independentes -, a autonomia dada na Constituição proposta em 2022, não aos estados, mas aos povos indígenas era ‘meio demais’ para eles. Por mais que 10% da população seja indígena, o eleitorado chileno achava que era dar poder demais. Não me surpreendia o eleitorado chileno ter rejeitado por esse lado, mas também, porque era uma Constituição enorme e embora tivesse sido distribuída gratuitamente, as pessoas não leram, pegaram resumos e pegaram muitos resumos falsos pela internet. Havia pontos que, nas fake News, eram exagerados.
Ao olhar pela perspectiva da desinformação e fake News produzidos pelos meios de comunicação, como você enxerga que esses veículos colaboraram com a produção delas?
Nos últimos anos, os meios de comunicação chilenos davam a informação correta. O problema não é o meio de comunicação, seja de centro, de esquerda ou de direita. O problema é as redes sociais, que estavam dando as informações falsas. Nos jornais as informações estavam corretas, só que uma parte do público hoje em dia se abastece pelas redes. Esse é o grave problema das fake News hoje em dia.
A seu ver, por que existe uma falta de interesse do público de apurar informações que sejam esclarecidas e depender, na maior parte das vezes, do que é compartilhado nas redes sociais?
Primeiro, preguiça. Segundo, por conta da endogamia informativa. As pessoas se abastecem da informação que o amigo dá. É como se algo tivesse veracidade porque muitas pessoas leram, replicaram ou enviaram para várias pessoas. Existe uma tendência de as pessoas acharem que se tem cem, duzentos, mil falando ‘olha, aquilo existe’, as pessoas tendem a achar que aquilo existe. Se vem de um grupo de conhecidos, a pessoa tende a achar que é realidade. Outra tendência que existe na humanidade, e especialmente em algumas sociedades, é de achar que as histórias mais mirabolantes são mais reais que histórias comuns. A pessoa deseja acreditar naquele delírio. As pessoas acreditam por uma questão de fé. Fé é acreditar em algo mesmo que não tenha provas concretas daquilo.
Qual seria uma maneira mais criativa para que o jornalismo supere esse teor desinteressante e menos atrativo a fim de que as pessoas tenham mais vontade de se informar através dos veículos de comunicação e não pelas redes sociais?
Fazer uma coisa mais atraente seria mentir sobre ela. É o que acontece nas redes. Se o jornalismo quer continuar sendo sério, ele deve oferecer a realidade. Mesmo que ela seja medíocre, o importante é gerar uma análise sobre ela. Não é algo que depende só do jornalismo, depende também de que as pessoas prestem atenção ou não no que é grave e o que não é grave. O problema de tentar ocupar o espaço das redes sociais é que há o risco de criar um jornalismo sensacionalista. Não vejo uma saída sobre como levar as pessoas de volta ao mundo real, infelizmente. Teria que ser feito um novo sistema de educação, porque as pessoas têm que vir educadas do sistema educativo. É um cenário do qual eu não vejo uma saída.
Como você acha que o jornalista pode colaborar para manter a vivacidade dessas memórias que precisam estar conservadas, atemporais?
Primeiro, é necessário aproveitar as efemérides para falar muito sobre o assunto. A função do jornalista é essa: por um lado, aproveitar e falar da história sempre que for possível e, por outro lado, continuar investigando. Além de tudo, acho que a função principal do jornalista, que eu acho uma função altamente saborosa, embora não seja uma função altamente popular, é a de derrubar os mitos do presente ou do passado.
