A jornalista e ativista dos direitos humanos, Priscila Siqueira, comenta sobre o tráfico de pessoas, crime que faz milhões de vítimas ao transformá-las em mercadoria
Por Camila Terra

Todos os anos, mais de 2 milhões de pessoas são vítimas do tráfico humano, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU). Este crime é o pior desrespeito ao ser humano – como a própria organização define – pois retira a dignidade do ser ao reduzi-lo a uma simples mercadoria.
“Alguém poderá argumentar que esse número não é nada frente a uma população mundial de mais de sete bilhões de pessoas. Mas se uma única pessoa sumir por ter sido traficada e essa pessoa é sua filha, sua irmã ou irmãozinho, não vai ser como se todas as pessoas do mundo tivessem sumido?”
Quem traz esse questionamento é Priscila Siqueira, jornalista, ativista pelos direitos humanos e autora do livro “Quanto vale o ser humano na balança comercial do lucro?”
Aos 84 anos, Priscila segue na militância no combate ao tráfico de pessoas e relata um dos testemunhos que já ouviu: “Um senhor do Vale do Paraíba estava com a sua família passeando em Miami, nos Estados Unidos. Sua filha de 17 anos foi ao banheiro e nunca mais a encontraram. Esse senhor diz que preferia saber que um caminhão passara em cima da garota, do que não saber o que está sendo feito com ela”.

Por que vender gente?
“Porque dá muito dinheiro. A indústria da morte gera muita grana e emprega muita gente. O lucro ilegal do Tráfico de Pessoas, só perde para o tráfico de armas”, é categórica Priscila Siqueira.
Estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aponta que o tráfico de pessoas movimenta, anualmente, 150 bilhões de dólares em todo o mundo.
“Há uma diferença entre o tráfico de escravos que existia nas Américas com o atual. O primeiro aconteceu de um continente para o outro, já o tráfico de pessoas se caracteriza como sendo uma linha de montagem, que passa por: aliciamento da vítima; emissão de documentos falsos; fornecimento de cerca de mil dólares e uma roupa melhor para passar pela alfândega; até o destino final, em que tanto o dinheiro como passaporte da pessoa traficada lhe são retirados”, explica a ativista.
Priscila relata que muitas vezes a pessoa traficada não tem consciência do que aconteceu e pode dizer que foi para o exterior por vontade própria, porém, o fato de ter o consentimento da vítima não elimina o ato criminoso, uma vez que ela queria tentar uma vida melhor fora do país e não ser escravizada.
Fator Econômico
“O ser humano desesperado por não ter condições dignas de vida para si e sua família é mais facilmente vítima de exploração e promessas de uma vida melhor”, expõe a jornalista.
Relatório do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC), comprovou que a maior parte das vítimas do tráfico de pessoas são afrodescendentes, de baixa renda, sem acesso à educação e com dificuldades para encontrar emprego.
Esse é o caso de homens e mulheres das regiões mais pobres que vão para as cidades grandes e exterior na esperança de melhores condições para si e sua família.
“Enquanto houver um país explorando o outro, uma classe dominando as outras, um gênero se sobrepondo aos outros, terá pobreza e miséria no mundo e com ela haverá oferta”, declara Priscila.
Machismo
Com base na resposta ao tráfico de pessoas em 155 países do mundo, o UNODC revelou que 79% das vítimas são do gênero feminino.
“As garotas são cooptadas com promessas de empregos, como cuidadora de idosos, dançarinas, babás… ou mesmo são chamadas a se prostituir em países ricos, mas não para serem escravas”, conta a ativista.
Pesquisa da ONG UNANIMA Internacional revelou que 98% dos usuários de mulheres e crianças vulneráveis, são do gênero masculino, independente de classe social ou etnia.
“Ele nasce homem então se sente no direito de explorar mulheres, jovens e meninas, como se fossem objetos a serem usados sexualmente e depois descartados”, opina a jornalista.
Legislação
Priscila afirma não existir em nível nacional ou internacional uma legislação que enfrente com sucesso o tráfico de pessoas.
“No primeiro governo do presidente Lula foi criada a política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e, em seguida, o primeiro Plano Nacional que previa um Comitê Interinstitucional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em cada estado da federação”, explica Priscila.
Ela conta que os comitês eram formados pela sociedade civil – representantes do jurídico, saúde, educação e serviço social – de cada estado e que, enquanto funcionaram, foram fundamentais no enfrentamento ao tráfico. Porém, desde o governo Temer não há evolução no cenário.
“A briga que eu quero é pela política pública, temos que lutar por ela, fazer um movimento para conseguir que os comitês voltem a funcionar com estrutura de psicólogos, assistentes sociais e educadores. Se faz urgente a volta desses comitês para diminuirmos a incidência desse crime no Brasil”, enuncia a militante.

Combate
Para Priscila, a base do enfrentamento ao tráfico de pessoas é um tripé composto por: conscientização, responsabilização e atendimento à vítima.
Conscientização para que deixe de ser considerado uma “lenda urbana”. Nesse nível são importantes ações junto às escolas e igrejas, pois a maioria das vítimas tem entre 13 e 25 anos.
A responsabilização é função do Estado através do seu aparato policial e da legislação pertinente.
Já o atendimento à vítima deve ser diferente da pessoa que sofreu maus tratos, principalmente quando se trata do tráfico para a indústria sexual. “As poucas jovens resgatadas da situação de escravidão vêm com sequelas físicas e psicológicas que precisam de atendimento especial”, testemunha a ativista.
“Sabemos que enquanto houver miséria no mundo com desigualdades regionais ou mesmo internas em cada nação, crimes como esse sempre existirão. Mas não podemos esperar a Utopia de um mundo justo e solidário para começarmos a dizer ‘não’ ao tráfico de pessoas”, finaliza Priscila Siqueira.
