O professor e pesquisador Ovando José de Morais fala sobre a evolução da visão da sociedade perante a comunidade LGBTQIAPN+

Bernardo Corvino

 Para Osvando José de Morais, 66 anos, a visão da sociedade sobre a comunidade queer evoluiu nas últimas décadas, entretanto, ainda há muito o que melhorar. “Existe a mudança, porém não foi a que a gente esperava, que eu gostaria”, ressalta. O professor da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC), da Unesp-Bauru, conta à revista Entre Cores como foi sua juventude como homem gay, quando estudou Letras na USP (Universidade de São Paulo) no final dos anos 1980, e se assumiu aos 25 anos. Também aborda como é ser uma pessoa LGBTQIAPN+ na terceira idade.

Osvando é doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP) e atual coordenador do curso de jornalismo da Unesp. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Como você descreveria sua jornada pessoal como pessoa LGBTQIAPN+? Da juventude até agora? 

A minha geração  é a que sofreu muita discriminação, muito preconceito e a gente, de certa forma, como estratégia de sobrevivência, ficava escondido. Na década de 70, 80, a gente ficava no armário. Tanto é que, até hoje, não frequento muito da vida noturna. Não gosto de barzinho, não saio de casa. Justamente por isso, é consequência dessa repressão e auto repressão também. Mas, de certa forma, a gente abriu o caminho para essa nova geração que está vindo aí.

Você teve algum desafio específico na juventude? 

Eu tive um desafio, que era me sentir sozinho. Na época, era uma comunidade enrustida e reprimida, também como eu era. Então, a partir da década de 90 é que as coisas começaram a melhorar um pouco.  A gente começou a ficar mais solto, mas, mesmo assim, eu continuei com o mesmo estilo de vida. 

A USP era um ambiente muito liberal, não tinha grandes problemas, mas os professores tinham preconceitos. Fatalmente você vira piadinha, você vira motivo de comentários. Eu fiquei na USP por vinte anos, até fazer o doutorado, e havia muitos professores homofóbicos. A gente tinha muitos problemas em sala de aula com relação a eles. Mas acho que muita coisa mudou, com certeza mudou.

E você diria que essa sua experiência na faculdade durante a juventude afetou sua vida ?

Afetou porque eu não era uma pessoa descontraída. Sempre tem um ataque de algum lado, nunca fui uma pessoa descontraída. 

Antes de vir para a Unesp, eu estava em uma outra universidade, que o meu companheiro também estava. Nós entramos juntos nessa universidade e nós fomos demitidos por uma homofobia explícita. 

Até os trinta anos, era uma pessoa muito amarga porque vinha porretada de todos, na universidade e fora dela. Mesmo que você siga uma vida assim toda certinha, toda bonitinha, sem nenhuma falha, nenhum deslize, eles encontram. Eles misturam a nossa vida pessoal com a nossa vida profissional. Enfim, tudo que acontece de errado é “só podia ser porque ele é gay”.

Eu aceitei muito desaforo, a gente leva isso pra casa e fica meio amargo.

E afetou a sua sua vida acadêmica também? 

Afetou no sentido de eu ser uma pessoa menos interativa. Eu sou com os meus alunos, mas no meu ambiente de trabalho, eu não sou. Eu ainda ando “armado”, porque qualquer coisa que você faça podem usar contra você.

E como você lida com isso? Eu lido sendo formal, a formalidade para mim é uma arma. Os meus relacionamentos profissionais são formais, não vou ao barzinho, não saio com colega de trabalho porque, por menor que sejam, tem comentários. Então, eu evito porque já sei que tem alguns resultados em relação a isso.

Vivo com uma geração um pouco mais jovem que eu, uma geração que tem cinquenta anos, uma geração que tem quarenta anos. A geração de quarenta é mais tranquila, já a geração de cinquenta é mais homofóbica.

Você percebe que sua atitude, na atualidade, mudou em comparação a sua juventude? Mudou, eu estou mais tranquilo. Eu sou uma pessoa mais meiga, mais tranquila na terceira idade. É porque eu acho que já tive uma trajetória intensa, fui casado. 

Enfim, eu nem imaginei que eu fosse chegar nesse momento. Posso dizer assim que eu vivo tranquilo, vivo feliz. Eu acho que a terceira idade traz uma espécie de saber viver, a gente vive a vida mais calma possível, sem atropelos, sem grandes desejos e sem grandes anseios. Quer dizer, somos pessoas realizadas, eu acho. Eu me sinto assim, pelo menos.

Apesar da tranquilidade, tem algum desafio que você enfrentou só quando começou a envelhecer? Como você lidou com ele? 

Eu acho que o grande desafio que a gente tem na terceira idade é também uma espécie de preconceito. As pessoas costumam ver a terceira idade como coitadinha e ninguém é coitadinho. Nós temos autonomia, nós somos pensadores, professores, pesquisadores. Então, o fato de eu ter 66 anos não me faz diferente de quem é mais novo.

Você acha que a percepção e a aceitação das pessoas LGBTQIAPN+ mais velhas são diferentes das outras faixas etárias? 

São bem diferentes. A tendência normalmente é as pessoas te verem como um coitadinho, um velhinho gay.

Você acha que a sociedade está se tornando mais acolhedora e inclusiva em relação a essa parte da população agora? 

Está muito mais acolhedora. Entretanto, ainda existe uma parcela grande, muito grande, que é dissimulada, hipócrita e que finge que aceita, mas não aceita. 

Além desses esteriótipos que você considera  de “coitadinho”, tem algum outro estereótipo das pessoas mais velhas LGBTQIAPN+? 

O estereótipo que a gente tem que tomar muito cuidado é o de malvado. Todo gay é malvado já  que só sofre com discriminações, então ele se vinga sendo malvado. Essa não é a realidade. 

Você tem mais amigos LGBTQIAPN+ da sua idade? Eles são de longa data ou são mais recentes? 

Tenho e são de longa data, desde a faculdade. A gente se vê uma vez por ano,  uma vez a cada três anos, a gente fala muito mais pelo telefone. A gente conta nos dedos aqueles amigos que ficam mesmo.

Como é sua relação com eles e o papel deles na sua vida?

Quando eu estava na capital, íamos ao teatro juntos, ao cinema, em casa comer pizza, ao museu. Quando eu vim para Bauru, há seis anos, a coisa ficou mais restrita porque fica a 400km  de São Paulo. 

Você comentou que vai ao teatro, ao cinema. Como você vê a representação das pessoas LGBTQIAPN+ na mídia, na cultura popular? Você acha que isso mudou durante o os anos?  Eu até estava pensando nisso ultimamente. Ainda são clichês, nós fomos mostrados como clichês, o engraçadinho, o bonitinho, o colorido. É o estereótipo mesmo, não mudou muito durante o tempo.

Você acredita que houve uma evolução da aceitação da comunidade LGBTQIAPN+ na sociedade? 

   Tirando esses problemas que eu já contei, eu vejo uma evolução sim. Mas a aceitação ainda é um problema da maioria das famílias. 

   Existe a mudança, porém não foi a que a gente esperava, que eu gostaria.  Esperava muito mais. Até os anos 90, eram poucas as transformações, as aceitações. Depois dos anos 2000, parece que a comunidade se mostrou mais e passou a exigir mais dos seus direitos. Ainda assim, vejo como uma luta a ser travada.

    Por exemplo, eu fui casado oficialmente, com documento, e tudo foi difícil.  No início, era lei porém era imprecisa, não era bem objetiva, não era específica e aí a gente foi enfrentando problemas até resolver. Hoje, pelo menos, isso é  normal, não tem grandes problemas, mas você pode ver que, quando  dois homens estão se casando, ainda há um burburinho. 

    Então acho que a gente precisa avançar muito, a gente precisa avançar não só em relação aos nossos direitos civis, mas em relação aos nossos direitos políticos também. Eu sou de esquerda e quando falo que sou comunista as pessoas levam choque. Ainda mais comunista gay. Mais um choque. Um choque duplo.

    Apesar disso, a geração de hoje está vivendo em um paraíso em relação ao que eu vivi até a década de 90.

Você se sente acolhido pela própria comunidade? Como é a sua experiência agora que você está envelhecendo como pessoa LGBTQIAPN+? 

É difícil responder porque eu vivo uma vida isolada. Eu não frequento muito a comunidade,  com exceção de alguns desses  amigos que eu tenho.

Sou muito respeitado e muito querido. Nós estamos crescendo muito como comunidade, a gente compartilha os nossos problemas, os nossos desejos, os nossos anseios. Isso ajuda bastante.

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