Relatos horripilantes são passados de geração para geração e mudam de formato nos dias atuais. De onde vêm o apreço do povo brasileiro pelas lendas e histórias escabrosas?

Por Léa Secchi

O Brasil, desde sua colonização até depois da viralização do tiktok, na terceira década do século XXI, se constituiu de forma rica por raízes culturais diversas, que crescem até hoje em solo fértil, adubado pela imaginação e vivência da sua população.

As verdadeiras especiarias nacionais, que incrementam a mente e se fazem imortais mesmo depois de centenas de anos, são seus mitos, lendas e costumes. 

O Folclore brasileiro pode ser compreendido como um conjunto de expressões da cultura popular que agrupa aspectos da identidade nacional. A diversidade do meio erudito prevalece por tradições típicas e pela junção das várias culturas que formam uma excentricidade pátria, moldada sobretudo por narrativas portuguesas, indígenas e africanas.

Mitos, lendas e costumes característicos de diferentes regiões do país são passados através da oralidade de bocas mais velhas para ouvidos mais novos. De pai para filho, avó para neta, de geração para geração, as criaturas e seres fantásticos continuam vivas, habitando o imaginário do povo em cada canto do país. 

Foto: Wikipedia/Reprodução

A Mula sem Cabeça, Iara, Saci Pererê, Caipora, Curupira, Boto Cor de Rosa, Negrinho do Pastoreio, Cuca, Boitatá, Vitória régia, Comadre Fulozinha e Lobisomem são os personagens mais conhecidos pelas bandas do território brasileiro, se somando a cultura supersticiosa folclórica.

Talvez eles mudem de nome ou as narrativas se embaralhem e acabem se transformando: mais longas, mais curtas, aterrorizantes ou calmas. Talvez elas venham acompanhadas de um sermão ou sejam contadas sussurradas, iluminadas por uma fogueira ou lanterna.

Os contos são recordados em especial à noite, unem crentes e descrentes, dão arrepios ou fazem rir. Eles demonstram a criatividade ou realidade daqueles que os criaram ou os viveram, e ainda assim continuam sendo repassados.

Na realidade, esses relatos só começaram a ser difundidos avidamente a partir do século XIX, depois que autores e intelectuais os ouviram da boca do povo e os publicaram.

As histórias têm berços diferentes e se espalharam por outras terras, hoje, moram não só nas comunidades, mas também em espaços não-físicos, como as mídias digitais. 

O Folclore Contemporâneo

“Um amigo disse que soube por um vizinho que o primo conhece um cara que jura que é verdade.”

As Lendas Urbanas são um tipo de folclore que envolve mitos contemporâneos. Em outras palavras, histórias com origem mais recente, que de acordo com o historiador Airton de Farias, em  correspondência ao Diário do Nordeste, atualizam repertórios da tradição, e se articulam numa rede de cultura viva e móvel. 

Do Bicho Papão ao Homem do Saco, elas assombram ou impressionam. Podem ter um fundo romântico, sobrenatural, mirabolante ou cotidiano. Sempre se destacando pela excentricidade, ultrapassam gerações e permeiam o imaginário popular.

São constantemente reinseridas no espaço urbano para denunciar os anseios da sociedade, e fictícias ou não, fazem parte das recordações de um povo. Na atualidade, esses causos se aliam à tecnologia e se difundem com o suporte do rádio, jornal e internet.

Airton conta que elas nascem da mescla do imaginário religioso, marcado pelas crenças e princípios, e do folclore local, influenciado pela população rural e antigos moradores das cidades. As histórias acabaram reproduzidas por meio da tradição oral, e com o passar do tempo, tornaram-se verdadeiras relíquias narrativas de cada região.

“As lendas urbanas sempre existiram em todo ambiente urbano, até mesmo nas metrópoles. O que faz com que elas se perpetuem é o caráter excêntrico e mirabolante dos mistérios. Isso chama a atenção das pessoas e começa a fazer parte dos contos fantásticos repassados ao decorrer dos anos”, complementa.

Autópsia do ET no Fantástico e A Loira do Banheiro

Na televisão, desde por volta da década de 1990, casos bizarros e narrativas assustadoras ganharam destaque. A infância de jovens e adultos do Século XXI talvez tenha sido permeada por medos infligidos por programas de TV, que em sua programação exibiam conteúdos sensíveis e assombrosos para um público infantil. 

Foto: Philip Mantle/The Sun/Reprodução

Os últimos anos do século XX foram contaminados por um pouco de caos e esquisitices. Na Globo, o Fantástico mostrava em horário nobre a autópsia de um extraterrestre, o público reagia como de costume e ficava horrorizado.

Perplexos, curiosos e cativados por causa do domínio televisivo da época, os espectadores se tornaram fiéis, as atrações mais comuns e o quadro um fenômeno. Daí se seguiram ainda mais episódios excêntricos: O Caso do ET de Varginha, Chupa Cabras e Poltergeist são exemplos.

O Domingo Legal, em especial, proporcionou à uma geração alguns traumas através de um dos maiores quadros da TV brasileira: o Lendas Urbanas. Além do Linha Direta Mistério, o apresentador Antônio Augusto Moraes Liberato, conhecido como Gugu, fez sucesso com as histórias horripilantes de seus programas de domingo no SBT.

A Loira do Banheiro, O Carona do Além e Maria Sangrenta foram episódios marcantes na vida de muitas crianças, e com certeza nas noites de muitos pais. 

Foto: Reprodução/Abril

As lendas não só tiraram o sono de boa parte da audiência, mas também deixaram um legado de atração pelo medo e procura por conteúdos assombrosos.

A prosperidade do gênero True Crime talvez tenha se originado com o fim de quadros como esses, e do seguimento de Horror veio também um nicho específico para as crianças que cresceram, e, hoje adultos, sentem falta do entretenimento similar ao da época. 

Monstros de Infância e Histórias de dar Medo 

No presente, histórias similares ganham espaço nos meios digitais, se propagam na internet e são compartilhadas em plataformas de streaming. Podcasts como o Caso Bizarro, de Mabê Bonafé, e o quadro “Luz Acesa” do Não Inviabilize, de Déia Freitas, são exemplos renomados e notórios por sua contribuição numa categoria nichada do Horror: a lenda urbana como gênero narrativo contemporâneo. Eles trazem relatos pessoais e reais de ouvintes pelo Brasil, e seguem como forma de entretenimento em áudio conquistando novos seguidores. 

Para acessar a matéria interligada “ ‘Monstros de Infância’ retornam para a vida adulta em podcast”, com a host do Caso Bizarro e Modus Operandi, clique aqui!

As redes sociais possuem papéis benéficos na disseminação de conhecimento, mas em contraposição, podem também ser limitadoras do mesmo feito. Seja numa cidade grande ou pequena, num canto do norte ou do sudeste, as memórias assombrosas da família e da comunidade continuam sendo compartilhadas, comentadas, armazenadas na mente coletiva, e reescritas quando recontadas. Contudo, elas não são imortais, e correm riscos devido ao aumento da velocidade dos fluxos tecnológicos. 

Nos dias de hoje, há um delineamento de segregação de espaços físicos de partilha, o que ameaça a divulgação de histórias locais. Nada como um bom “boateiro contador de cascata”, preferencialmente cara a cara, olho no olho, dando ao causo a devida emoção e transmitindo aos ouvintes os seus sentimentos.

Na Era da Fake News, há uma linha tênue que pode delimitar a extinção da tradicionalidade cultural do Brasil intrínseca às lendas e narrativas míticas, tendo como aliada os meios digitais. Isso, por conta da propagação de mentiras que embaralham as peças com os dizeres “mentira” e “história”. 

No Século da Descrença, a tentativa constante da busca pela verdade talvez mude a experiência de consumir mistérios. Nas lendas, temos aspectos como a  crença e o  medo, “a lenda demanda do contador e do ouvinte a crença na verdade do que se conta” e o que mais se teme hoje, é ser enganado. 

Foto: Reprodução/Globo Play

Lucas Amaral, estudante de jornalismo do primeiro ano da Unesp-Bauru, compartilha uma de suas histórias assombrosas de infância. “Eu era uma criança medrosa, assistia as Lendas Urbanas do Gugu com minha mãe a noite, e um dos programas me marcou para sempre. Ele mostrava extraterrestres sequestradores de crianças que dormiam com a janela aberta, e eu no caso, era uma delas. Na minha cabeça eu era um alvo, e com medo, passei dias sem dormir”.

Questionado sobre como acredita que será o futuro de casos bizarros como o dele, o estudante comenta: “Acho que sempre haverá espaço para o terror e para as lendas urbanas. Por mais que a tecnologia avance e o ceticismo aumente, o medo, é  talvez o sentimento mais primário do ser vivo, e isso pode apenas se adaptar conforme o cenário”.

“Quem sabe não vamos ter lendas urbanas sobre uma inteligência artificial que assassina pessoas, como na série Black Mirror, ou ainda, sobre robôs fantasmas”, conclui. 

Nenhuma sociedade constrói o seu presente e projeta o seu futuro sem compreender suas tradições e origens históricas. Conhecer as crenças míticas, folclóricas e urbanas brasileiras, além de suas influências, reforça um sentimento identitário de pertencimento e união. Uma pátria tem História, Memória e Identidade, e tudo isso é lembrado pelos seus habitantes. 

Da mula sem cabeça ao ET de Varginha, o Brasil se constituiu como um país rico em cultura, curioso e até assombroso. Mantemos a sede pelo estranho, continuamos consumindo desta fonte, e assim, é provável que gerações futuras também façam.

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