Entre a superlotação do transporte público e os casos de acidentes, problemas no deslocamento afetam níveis econômico, social e pessoal dos cidadãos

Jamily Rigonatto e Thierry Oliveira
Com a expansão da urbanização, cidades médias e grandes passaram a esbarrar em dificuldades de deslocamento. A mobilidade urbana, definida pelas condições de locomoção da população em prol do desenvolvimento socioeconômico, vira alvo de preocupação com planejamento e infraestrutura. Assim, o retrato da evasão rural, incentivado pela industrialização iniciada no século XIX, é definido por uma série de espaços inacessíveis e pouco inclusivos.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, o direito de ir e vir é garantido como um dos direitos fundamentais estabelecidos pelo artigo 5º, inciso XV. Entretanto, o surgimento de municípios e comarcas, cada vez mais habitados, criou impasses na declaração legislativa. Consequências como a superlotação de vias, má implantação de transporte público, falhas na sinalização e negligência a áreas periféricas, são alguns exemplos visíveis.
Esse contexto se intensifica quando são analisadas regiões e populações marcadas pela vulnerabilidade social. Em um cenário espacial, a falta de acesso a locomoção cria desigualdades capazes de afetar a convivência interpessoal, a manutenção dos vínculos empregatícios, o lazer e até mesmo a sobrevivência.
A situação não é diferente em Bauru, município do interior de São Paulo que conta com aproximadamente 380 mil habitantes. O centro urbano, fundado em 1896, é um dos mais populosos do Centro-Oeste paulista e, cada vez mais, lida com as consequências da falta de investimento em mobilidade espacial.
Se nas principais vias da cidade a questão já fica evidente, regiões mais distantes das áreas centrais enfrentam ainda mais dificuldade para alcançar projeções de desenvolvimento. Tais espaços, ocupados em maioria por pessoas racializadas, marginalizadas e com instabilidade econômica, encaram barreiras além do plano físico.
Quando o assunto é transporte público, o passe livre é para o descaso
A instalação de ações de transportes públicos em centros urbanos é pautada em diversos motivos. Em um cenário ideal, esses veículos promovem o deslocamento rápido de um grupo de pessoas, além de oferecer o serviço por um valor acessível. No entanto, a prática caminha por uma rota diferente.
Entre as maiores reclamações acerca dos serviços de ônibus, metrôs e bondes, estão casos como a superlotação, atrasos, falta de elevadores automotivos em funcionamento adequado e situações de assédio e violência. Os obstáculos criam uma distância entre o plano e a execução, impedindo a segurança e a efetividade do deslocamento dos usuários dependentes desse tipo de condução.
Com cerca de 319 bairros compondo a extensão residencial de Bauru, os 240 veículos pertencentes à frota de ônibus não são suficientes para atender as demandas da cidade. Desde 2017, o aumento foi de apenas 2 carros; os dados são da Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano (Emdurb).
Assim, a qualidade do transporte oferecida à população segue em discussão entre os munícipes e órgãos governamentais. No último ano, a Câmara Municipal de Bauru abordou sobre o passe dos estudantes em unidades assistenciais e, também, promoveu sessões que levaram à diminuição do valor tarifário do circular.
Fora do âmbito da Casa de Leis, o debate não foi silencioso. No final de 2022, uma idosa de 92 anos foi atropelada por um ônibus após o desembarque. O acidente, que ocasionou o falecimento da mulher, gerou agitação social em relação à qualidade e segurança dos veículos disponíveis para o transporte público na cidade e o tratamento oferecido aos passageiros que os utilizam.
Quando questionado sobre ações de melhoria, o Diretor de Trânsitos e Transportes da Emdurb, Flávio Kitazume, explica que o objetivo do órgão, que gerencia esses termos, e do próprio município no âmbito executivo, é investir em recursos tecnológicos para aumentar a eficiência da resposta aos problemas.
O diretor explicita as propostas e preocupações: “nós queremos modernizar e alinhar para que as empresas contratadas utilizem mais ferramentas tecnológicas, para que possamos ter um feedback a curtíssimo prazo e aderir ferramentas que possam permitir uma ação mais rápida por parte de quem gerencia para poder dar um transporte público que seja mais ágil, mais eficaz e, por sua vez, mais atraente”.

Sinal verde! Exceto para a acessibilidade
Os desafios de ir de um ponto a outro em um município podem ser maiores quando o público tem limitação do funcionamento completo ou parcial do corpo, ou ainda, se insere em um contingente cujo envelhecimento acarreta doenças crônicas e perda de habilidades motoras. Já que, muitas vezes, as construções viárias são estabelecidas pensando em um fluxo de pessoas sem deficiência (PsD) e em idade trabalhista.
Nesse contexto, estão feridas a previsão da Lei nº 10.098 de que é dever do Estado garantir ferramentas e impedir barreiras urbanas, arquitetônicas, nos transportes ou na comunicação para pessoas com deficiência (PcD), assim como, o direito explícito no Estatuto do Idoso da garantia da liberdade de ir e vir.
Ariani Queiroz Sá é presidente do Conselho Municipal de Pessoas com Deficiência de Bauru (COMUDE) e exemplifica alguns dos entraves enfrentados pelo grupo PcD na movimentação pelos espaços públicos: “existem vários tipos de barreiras e, mesmo se em todas as esquinas houvesse rampas de acesso, ainda assim, a acessibilidade está longe de ser real”.
A cidade não conta com preocupação quanto aos aparatos voltados à melhoria da autonomia e independência. Elementos como semáforos sonoros, rampas e calçadas alinhadas são inexistentes ou presentes em poucos lugares. Nos ônibus, é possível ver bancos para cadeirantes com defeitos, sem cintos e com o botão da parada inutilizável.
Além do capacitismo, o etarismo também toma os holofotes. Com 62.017 moradores com mais de 61 anos, Bauru não contempla as necessidades desse público. Para a doutora Marília Berzins, pensar na movimentação da população idosa envolve mais que pontuações legais. Em sua declaração, a Presidente do Observatório da Longevidade (OLHE) afirma: “o fato de criar mais legislação não garante seu cumprimento, quanto mais legislações se cria, mais complicado fica. Nós precisamos garantir que todas as pessoas que vivem na nossa sociedade tenham seus direitos garantidos e protegidos”.
Uma andorinha só não faz verão, mas, em Bauru, uma Avenida pauta o tráfego todo
No primeiro semestre de 2023, a região central de Bauru foi tomada por congestionamentos, dificuldades de locomoção, má sinalização e falta de informação acerca das mudanças de rotas necessárias aos motoristas. O distúrbio foi causado pela obra de recapeamento da Avenida Rodrigues Alves, promovida pelo governo Suéllen Rosim, por meio da Secretaria de Obras.
Durante a reforma, ruas foram fechadas, pontos de ônibus inutilizados e calçadas foram bloqueadas. As ações afetaram não só condutores de automóveis, mas também transeuntes da cidade. Os ônibus tiveram suas linhas modificadas, entretanto, a falta de comunicação da empresa responsável, a Associação Das Empresas De Transporte Coletivo Urbano De Bauru (Transurb), impediu os usuários dos circulares de saberem quais paradas estavam em funcionamento e em que horários.
A obra aconteceu em duas etapas principais: na primeira, a via foi reformada entre a Av. Nações Unidas e o Cemitério da Saudade, com impedimentos no trânsito feitos para organizar a circulação e seguir com a reestruturação. Já na segunda, o trecho que liga a Av. Pedro de Toledo à Av. Nações Unidas, teve interdições para a finalização da obra. Nesta, a Rua Cussy Júnior se tornou a principal passagem para todas as linhas de ônibus que transitam pelo centro e também para os veículos privados.
A falta de planejamento da obra revelou diversos problemas de mobilidade urbana, já que interferiu na acessibilidade e segurança das pessoas. Além disso, evidenciou a baixa qualidade do transporte público e o fluxo excessivo de automóveis individuais. Nos horários de pico, o tráfego chegava a ficar congestionado por até 30 minutos, enquanto isso, pedestres corriam risco de atropelamento devido à falta de sinalização.
“Foi um caos”, desabafou Marcus Almeida. O jovem estudante e trabalhador que circula diariamente pelo centro para ir ao trabalho, relatou suas principais dificuldades: “no início fiquei confuso e não sabia por onde passar, e precisei de uma semana para me adequar a rotina que foi alterada por este problema”.
Sinal fechado
Quando se fala em mobilidade, a funcionalidade do trânsito é um parâmetro essencial. Com o aumento da aquisição de veículos próprios, é preciso pensar em sinalização, fluxo viário e conscientização de motoristas. “Atualmente, o planejamento da mobilidade urbana deve garantir a segurança dos usuários do sistema e também considerar as questões de sustentabilidade e acessibilidade da população aos sistemas de transporte, conforme as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana”, expõe Pedro Borges, Head de Mobilidade Segura do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV).
A questão não é superficial e interfere intensamente no dia a dia da população. Segundo o IBGE, a malha rodoviária da cidade de Bauru é ocupada por um montante de 180.076 automóveis. No trânsito, há ainda diversas outras categorias de veículos, como as motocicletas, caminhões e ônibus, atingindo a quantidade de 298.936 meios de transporte.

Até maio de 2023, são contabilizadas 12 vítimas fatais de acidentes de trânsito em Bauru. No ano anterior, o índice fechou com 33 mortes no trânsito da cidade, sendo 27 delas motociclistas ou pedestres. O número levanta uma preocupação acerca da efetividade da circulação em ruas e rodovias, e um alarde para a segurança especificamente de pessoas que se movimentam a pé ou em veículos de menor porte.
Pensando nisso, Pedro ressalta a importância de uma infraestrutura que pense na interação entre diferentes tipos de transporte: “o planejamento das cidades deve considerar e prever os conflitos entre os modais mais prevalentes, como o automóvel, e os modais menos seguros, como motocicletas, bicicletas e pedestres. Essas medidas podem vir em forma de adequações e melhorias na infraestrutura viária (ruas, calçadas, ciclovias, faixas exclusivas), na sinalização (faixas de pedestres) e na mudança de normas e aspectos operacionais, como a redução dos limites de velocidade e inserção de fiscalização eletrônica de velocidade”, diz o entrevistado.
Outro ponto de destaque, é o papel do governo municipal quanto às ações de educação e, principalmente, as de fiscalização. Para o ONSV, as falhas humanas têm um impacto considerável na ocorrência de acidentes, mas as vistorias e a evolução da legislação são aspectos que sempre precisam de atenção.
Nas linhas do trem

A soma de complicações vividas por Bauru quando se fala em mobilidade urbana vem de muito tempo atrás, para atingir a exatidão, do período da expansão das ferrovias da região: em 1939, quando o governo brasileiro junto a Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) iniciou a construção malha ferroviária e, desde então, as ferrovias brasileiras ganharam enormes proporções.
A NOB era a responsável por todas as viagens que aconteciam da cidade até diversos pontos do Brasil. Entre as principais linhas estavam a que ligava Bauru a Corumbá, no Mato Grosso do Sul, e o ramal que puxava caminho entre Campo Grande e Ponta Porã. A presença das linhas de grande movimentação foi um dos maiores motivos para o crescimento econômico e social na região.
O cenário não era diferente a nível nacional, e a malha ferroviária chegou a mais de 30 mil km. No entanto, com as mudanças nas relações comerciais internacionais e o desenvolvimento industrial, essa via de transporte começou a ser desvalorizada.
“A partir dos anos 50, o processo de desenvolvimento da economia brasileira foi pautado pela abertura do capital externo e desenvolvimento da indústria automobilística como eixo. Neste sentido, há uma expansão do transporte rodoviário do país em detrimento da malha ferroviária”, afirma Verônica Sales Pereira, cientista social e docente da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC) da Unesp.
Apesar do piso no freio do investimento nas ferrovias, elas seguiram por muito tempo realizando longos deslocamentos de pessoas, produtos e combustíveis através de todo o território brasileiro. Nesse meio tempo, a NOB se transformou em Rede Ferroviária Federal, com o intuito de unificar as estradas de ferro e garantir que todas fossem patrimônio governamental.
Foi com o boom das privatizações que as ferrovias deixaram de ser estatais e surgiu a Ferrovia Noroeste S.A., além da Brasil Ferrovias S.A.. Nesse contexto, o fluxo de passageiros dos trens foi diminuído para dar espaço a mais mercadorias e, cada vez mais, as estações – antes repletas de movimento – se tornaram parte de um cenário desértico.
Atualmente, as linhas de trem da cidade funcionam apenas para o transporte de combustíveis. Muitas delas evidenciaram outra face da urbanização: a pobreza; e agora compõem ocupações e assentamentos de pessoas que não tem posses domiciliares. O retrato remete a uma indiferença de líderes municipais quanto ao resgate e preservação desses espaços, que não mais contribuem para o deslocamento populacional.
Por outro lado, as rodovias não deixaram de expandir. É nelas que está concentrada a maior parte dos deslocamentos de pessoas e de diversos produtos, que circulam pelo país inteiro em caminhões de carga e outras categorias ligadas a empresas de entrega. Só sob a administração direta do Governo do Estado de São Paulo são 190 rodovias, somando mais de 16.000 km.
Mobilidade sustentável e soluções em transporte
Falar de mobilidade urbana não envolve somente a locomoção, mas também a sustentabilidade. Cidades que não incentivam o transporte coletivo e as opções menos poluentes de veículos, são grandes agentes da contaminação do ar, contribuindo de forma ativa para as altas taxas de emissão de Gás Carbônico (CO2) – uma das principais responsáveis pelo desequilíbrio do efeito estufa e da formação de chuvas ácidas.
Assim, as cidades médias e grandes são alvos de diversas pesquisas em busca de soluções que consigam manter o trânsito menos nocivo em diversas esferas, partindo desde a segurança e acessibilidade, até as opções sustentáveis. Uma dessas linhas de estudo define a Mobilidade Sustentável, uma alternativa que busca equilibrar o contexto ecológico com o socioeconômico.
Na Mobilidade Sustentável, aspectos de diversos gêneros caminham por um percurso no qual a meta é garantir um deslocamento populacional efetivo e sem maiores danos ao meio ambiente. Soluções simples como o aumento de transporte coletivo, até o incentivo ao uso da tecnologia para melhorar a comunicação e diminuir o uso de transportes individuais são exploradas na modalidade.
Entre os destaques também ficam a implantação de recursos em vias, voltados a melhorar a locomoção de transportes de menor porte. Assim, ciclovias e faixa azul podem ser aplicadas para melhorar o trânsito, viabilizar o uso em maiores quantidades de veículos menores e aumentar a segurança.
A implantação de um espectro sustentável contribui para áreas além da ambiental, é também um fator essencial para a qualidade de vida e saúde populacional. Isso acontece porque com a melhora do trânsito e diminuição de gases, as pessoas passam menos tempo nas ruas, correm menos riscos de acidentes e atropelamentos, e ainda ficam menos expostas a gases tóxicos.
