A construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) em Bauru, foi símbolo arquitetônico e político de uma ferrovia estratégica, que ajudou a desenvolver a maior cidade do centro-oeste paulista

Estação da NOB Bauru em 1906.
 (Foto: projetomuseuferroviario.com.br)

Estação da NOB Bauru em 1906. (Foto: projetomuseuferroviario.com.br)

Bruno Henrique Barrena

  No início do século XX, a República tomou uma medida que seria determinante para o desenvolvimento do estado do já crescente estado de São Paulo. Em 27 de setembro de 1906 nasceu a Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. O Brasil oficialmente terminava a ferrovia que cruzava o Centro-Oeste nacional, sonho que existia desde a época do império. 

Contexto e a escolha de Bauru

Durante o século XIX, o segundo reinado discutia a necessidade de expansão do território rumo ao oeste. O interesse em construir uma estrada de ferro que ligasse de maneira terrestre o Mato Grosso até o litoral era uma maneira não só de povoar a região como também de escoar mercadoria para vizinhos e para o litoral. Até então o processo poderia ser feito exclusivamente por navegação pela bacia platina, o que dependia de relações com a Argentina e o Paraguai. 

Dentre outros projetos, surgiu em 1904 a Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Entretanto, a ideia inicial desviava o tráfego diretamente para Minas Gerais e Rio de Janeiro, passando fora do estado de São Paulo, desagradando a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, principal do país no contexto e que via o projeto como prejudicial aos negócios. Assim, sob seu patrocínio, o Clube de Engenharia do Rio de Janeiro divulgou parecer técnico, sugerindo que a nova ferrovia deveria partir da então vila de São Paulo dos Agudos com destino a Cuiabá. 

Como o traçado da Sorocabana já estava na iminência de alcançar a vila de Bauru, decretou-se então que a Noroeste deveria partir dos trilhos da Sorocabana em direção a Cuiabá.

Busto em homenagem a Joaquim Machado de Mello, engenheiro responsável pela contrução da estrada de ferro Noroeste do Brasil. (Foto: Bruno Henrique Barrena)

Em 1907, o destino da concessão federal foi trocado de Cuiabá para o porto fluvial de Corumbá, na divisa com a Bolívia, passando pelo Pantanal. Já em 1908, a rota foi dividida em duas partes: a primeira entre Bauru e Itapura próximo à foz do Rio Tietê, e a segunda entre Itapura e Corumbá.

Início e Construção

 A história da NOB teve início em 1904, quando foi criada a Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Com capitais belgas, franceses e brasileiros, o objetivo era ligar Bauru à cidade de Cuiabá. As obras da ferrovia começaram em novembro de 1904, partindo da estação Bauru da Estrada de Ferro Sorocabana e sendo concluídas em julho de 1905. A estação Bauru da Noroeste foi erguida nos arredores da estação da Sorocabana, marcando o início de uma nova fase para a região.

 A construção é marcada por conflitos, avanços e transformações. Há 110 anos, brancos e indígenas da etnia caingangue lutavam pela posse definitiva da terra. O conflito se intensificou a partir de 1905, com o início da construção da NOB.

Os Kaingangs com Arco e Flecha. Fotos: https://www.projetomuseuferroviario.com.br/
Na sociedade Kaingang, aos homens cabia às atividades de caça, confecção de armas e instrumentos de trabalho. (Foto: Museu Ferroviário Regional de Bauru).

Os Kaingangs, cultura que ainda resiste

A Região era majoritariamente habitada pelos Povos Kaingang, que pertencem ao tronco linguístico Jê, uma ramificação do tronco Macro-Jê. Foram apelidados pelos brancos de ‘coroados’, devido ao cote de cabelo específico que usavam. Estão entre os mais numerosos povos indígenas do Brasil, sendo um dos cincos povos com maior contingente populacional no Brasil atual e também a mais numerosa das sociedades Jê. Teriam se originado entre as nascentes do Rio São Francisco e Araguaia. A base de sua alimentação, antigamente, era marcada pelo consumo de carnes de aves, animais de pequeno porte e peixes; além da coleta de mel, palmito, frutos, raízes e larvas de besouro.

Na sociedade Kaingang, em seu passado histórico, a divisão de tarefas era feita por gênero, ou seja, aos homens cabia às atividades de caça e pesca e algum tipo de coleta; além da confecção de armas e instrumentos de trabalho. Quanto às mulheres, ficavam a cargo da agricultura, coleta de frutos, além das atividades artesanais como cerâmica, tecelagem, cestaria e trançados; além, é claro, da educação das crianças.

Quando os recursos escasseavam, o grupo trocava sua aldeia de lugar, queimando as antigas habitações e partindo para um novo local.

No caso dos Kaingang, a partir de sua origem geográfica, teriam se dispersado por praticamente todo o planalto brasileiro, se estendendo também por áreas que abrangem os Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande de Sul e partes adjacentes da Argentina. Há pelo menos dois séculos sua extensão territorial compreende a zona entre o Rio Tietê (SP) e o Rio Ijuí (norte do RS). No século XIX seus domínios se estendiam, para oeste, até San Pedro, na província argentina de Misiones.

 Sua entrada no território paulista provavelmente foi recente, talvez já no período pós-colombiano. Se instalavam nas matas, normalmente próximos a cursos de Rios secundários, diferentes do Guarani, por exemplo, que se fixavam próximos a Rios maiores, como o Tietê e tinham um modo de vida nômade, mudando suas aldeias para outros lugares assim que os recursos locais esgotassem. A cerâmica por eles produzida refletia esse modo de vida, pois confeccionavam (poucos grupos atualmente confeccionam a cerâmica) vasilhames não muito grandes, fáceis de se transportar. 

De modo geral, não só para os Kaingang, mas também para outros grupos indígenas que ocuparam a região, como os Guarani, os cursos da água tinham vital importância, pois além de fornecer o alimento, também serviam como referência geográfica e transporte. Os rios eram suas estradas.

Conflitos

“O conflito entres os Kaingang e os brancos provavelmente é muito antigo, desde que os últimos chegaram nessa região, sobretudo no período das monções, no século XVIII. Documentos dessa época relatam alguns conflitos com grupos indígenas, porém, a identificação da etnia, por muitas vezes era problemática, então, não se pode ter certeza” – Fabio Grossi dos Santos,
Historiador e Arqueólogo

A história diz que o choque entre brancos e indígenas na região se intensificou em fins do século XIX na formação do que viria a ser Bauru. São descritos alguns conflitos entre pessoas que chegam a tomar posse de terras e os kaingang, incluindo um dos pioneiros de Bauru, Felicíssimo Antonio de Souza Pereira. Nesse período os indígenas se encontravam na região em número extraordinário. 

Contudo, com a chegada da ferrovia no início do século XX, a presença e ocupação dos brancos, agora em uma empreitada patrocinada pelo Estado, se torna muito intensa e isso, em consequência, vai potencializar os conflitos com os Kaingang. E se darão de tal forma a realizar o extermínio sistemático desse povo pelos chamados bugreiros. De início, durante a construção da ferrovia Noroeste, os Kaingang realizavam apenas ações para retardar o avanço das obras, desmontando durante a noite, os trilhos instalados durante o dia, e coisas dessa natureza. Com o tempo, algumas mortes aconteceram e a propaganda do Kaingang, como um povo selvagem e que impedia o “progresso” estimulou as ações de extermínio em massa.

Os Kaingang, organizavam emboscadas contra os funcionários da construtora responsável pela ferrovia. A construtora, de propriedade do engenheiro Machado de Melo, não tolerou a resistência dos índios e recorreu aos “bugreiros” para eliminá-los. Bugreiros eram jagunços contratados pelos fazendeiros no século 19 para expulsar os índios de suas terras. Relatos da época indicam que esses capangas eram recompensados de acordo com o número de nativos que conseguiam assassinar.

Para tentar resolver essa questão e cessar os conflitos, em 1910, o Governo criou o Serviços de Proteção aos Índios (SPI), que tinha por função pacificar os indígenas hostis e colocá-los em reservas diminutas, praticamente acabando com sua cultura e tradições.  Em 1911 se inicia o processo de “pacificação” e os poucos Kaingang sobreviventes (em torno de 200) foram aldeados nas Terras Indígenas Vanuíre e Icatu. Essas terras indígenas estão próximas ao Município de Tupã, porém, perto de Bauru existe a Terra Indígena Araribá. Embora Araribá tenha abrigado os Guarani, atualmente, também existem Kaingang e outras etnias.

Longas Obras

Com o passar do tempo, a situação da ferrovia já era precária no final da década de 1910. A via férrea estava em más condições, as estações eram de madeira e os funcionários mal remunerados. Foi então que o engenheiro Arlindo Luz assumiu a direção da Noroeste e transferiu a sede administrativa para Bauru. Com a falta de espaços adequados para os escritórios, ele patrocinou o projeto de uma nova estação ferroviária, capaz de abrigar as três ferrovias que se cruzavam na cidade.

O projeto da nova estação foi retomado na década de 1930, mas a falta de recursos e o contexto político conturbado da época impediram sua realização imediata. Somente em 1935 as obras foram iniciadas pela Sociedade Melhoramentos da E.F. Noroeste do Brasil Limitada. A estação foi inaugurada em 1939, porém as obras complementares só foram concluídas em 1942. O investimento total foi de 5.870:509$870 réis.

A estação de Bauru se tornou um importante entroncamento ferroviário paulista, recebendo trens diários das companhias ferroviárias Sorocabana, Noroeste e Paulista. A estrutura imponente da estação, com sua arquitetura art déco, foi um símbolo do desenvolvimento e progresso que a chegada da ferrovia trouxe para a cidade de Bauru.

Trabalhadores construíndo a estrada de ferro. Foto: https://www.projetomuseuferroviario.com.br/
Construção da NOB foi gradual e foi sendo ampliada aos poucos. (Foto: Museu Ferroviário Regional de Bauru).

Memória, legado e Impacto 

A construção da estação ferroviária impulsionou o crescimento econômico da região. Com a facilidade de escoamento da produção majoritariamente agrícola, Bauru se consolidou como um importante polo comercial. Com mais oportunidade de mão-de-obra, o município atraiu imigrantes recém chegados ao país e migrantes de outras regiões. 

A presença da NOB em Bauru também trouxe impactos sociais significativos. A cidade se tornou um ponto de encontro de diferentes culturas e povos, refletindo a diversidade trazida pelos trabalhadores das ferrovias. Além disso, o transporte ferroviário possibilitou o intercâmbio, mesmo que parecidos, de pessoas, capitais e mercadorias entre as cidades e regiões próximas, possibilitando certa autonomia ao município. 

No entanto, com o passar dos anos, a ferrovia foi perdendo espaço para outros meios de transporte, como o rodoviário e o aéreo. A decadência do transporte ferroviário afetou diretamente a estação de Bauru, que viu seu movimento reduzido e suas atividades limitadas. No contexto de grande investimento em malha rodoviária no país,  a chegada da Rodovia Marechal Rondon, na década de 1960, foi um marco nesse processo, desviando boa parte do fluxo de passageiros e mercadorias para as estradas.

Apesar dos desafios enfrentados, a estação de Bauru ainda mantém seu valor histórico e arquitetônico. Em 2006, foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), garantindo sua preservação e proteção. Atualmente, a maior parte da história da NOB se encontra no Museu Ferroviário Regional de Bauru.

Atualmente

Governador de São Paulo Tarcísio de Freitas quando ainda era ministro. Foto: Foto: Alan Santos/PR

“O trem vai voltar a circular, gente vai ver. Tem carga aqui para usarmos na ferrovia e vamos ter a recuperação do ramal de Panorama a Bauru. E mais recuperações de ferrovias virão”, disse o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. (Foto: Alan Santos/PR).

O governador do Estado tem como promessa de campanha reativar a malha ferroviária do oeste paulista. O ramal ferroviário que faz a interligação de Panorama (SP), na divisa com o Mato-Grosso do Sul a Bauru (SP) foi citado em março de 2023 como trecho a ser recuperado para o transporte de cargas. Mais tarde em Abril, já pensando na possibilidade de reativação, o poder público promoveu audiências públicas para concessão de parte da ferrovia. Já existe uma ação judicial do Ministério Público Federal (MPF) para que seja construído um anel ferroviário em Bauru. A prefeitura está na ação judicial como parte interessada. Caso o Tribunal Regional Federal (TRF) julgue procedente o pedido do MPF, a União ficará obrigada a cumprir esta obra em Bauru, o que pode interferir no processo de concessão da ferrovia. O período do acordo foi discutido em 60 anos. 

A memória da NOB está em sua maior parte conservada no Museu Ferroviário Regional de Bauru, fundado em 26 de agosto de 1989. Situado próximo à Estação Ferroviária no centro da cidade, o museu é administrado pela Prefeitura Municipal de Bauru e pela Secretaria da Cultura. O prédio foi construído em 1903 e serviu como escritório da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Seu acervo é composto por pinturas, fotografias, documentos textuais e peças originais, incluindo equipamentos, ferramentas e maquetes, retratando a história das ferrovias da cidade, do estado de São Paulo e do Brasil. Além de ser um importante ponto turístico, o museu realiza diversas atividades culturais, como treinamentos, monitorias educativas, oficinas, shows e espetáculos teatrais.

A construção da NOB em Bauru é uma história marcada por desafios, conflitos e superações. Ela representa não apenas o desenvolvimento da infraestrutura ferroviária, mas também a resistência e a força daqueles que lutaram por suas terras e pelo progresso da região. A estação de Bauru, como um símbolo desse passado, tem o potencial de se tornar um importante ponto de referência cultural e histórica, mantendo viva a memória de uma época em que os trilhos da Noroeste do Brasil conectavam cidades e pessoas, impulsionando o desenvolvimento do interior paulista.

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