Verbas chegam diretamente no caixa da Prefeitura, que não precisa indicar o que será comprado ou pago com o dinheiro
A Prefeitura de Bauru recebeu R$ 2,9 milhões entre 2020 e 2022 do orçamento federal via “emendas pix”, sem precisar indicar como gastaria o valor. Esse tipo de transferência direta de recursos é uma forma de envio das emendas individuais de deputados e senadores, as RP 6, em que a União manda dinheiro diretamente ao caixa de prefeituras em todo o Brasil.
O valor de cada emenda pix é definida pelos parlamentares durante a elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA) do governo federal. Na maioria dos casos, a informação de quem receberá o dinheiro só é tornada pública após o seu empenho, isto é, quando o Estado analisa o que foi definido em seu orçamento para aquele ano e separa os valores que devem ser repassados. Segundo estudo da Transparência Brasil, a mesma lógica se aplica para 85% dos R$ 13 bilhões em emendas de transferência especial enviadas de 2020 até este ano.
No caso de Bauru, todas as 14 emendas enviadas só puderam ser identificadas com o empenho. Os deputados e deputadas paulistas que enviaram o dinheiro, no entanto, são conhecidos: Joice Hasselmann (sem partido), Paulo Teixeira (PT), Eli Côrrea Filho (União Brasil), Carlos Zarattini (PT), Capitão Augusto (PL), Rodrigo Agostinho (PSB), Vicentinho (PT) e Gilberto Nascimento (PSC).
O atraente nas emendas pix é, justamente, que esses e outros parlamentares puderam escolher diretamente quem será beneficiado com dinheiro do governo federal. A procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora de Administração Pública da FGV-RJ, Élida Graziane, define isso como sendo “uma escolha tão pessoal, tão arbitrária, tão subjetiva, que é uma execução privada do dinheiro público”.
Depois que o dinheiro de fato chega ao município, há outra barreira. As informações sobre os valores recebidos estão espalhadas pelo Portal da Transparência da Prefeitura de Bauru. Encontrar o que será feito com o recurso de cada deputado federal requer uso de ferramenta de pesquisa avançada e cruzamento dos dados com o Portal da Transparência do governo federal.
Metade dos R$ 2,9 milhões foi usada na compra de ambulâncias e minicarregadeiras. Outra parte do valor está custeando as obras de infraestrutura do Parque Primavera e o futuro Centro Comunitário do Jardim Nicéia. O restante foi ou ainda será repassado para projetos culturais, como a Semana de Hip Hop de Bauru, e para o serviço de castração gratuito oferecido pela Prefeitura.
O destino de algumas das emendas pix, ainda, é difícil de ser rastreado, como é o caso dos R$ 100 mil de Vicentinho e de uma porção dos repasses de Rodrigo Agostinho.
Emendas pix enviadas à Bauru entre 2020 e 2022 por parlamentar
Deputados com laços bauruenses enviam verbas de forma recorrente. Agostinho, Capitão Augusto e Paulo Teixeira repassaram, juntos, mais de R$ 10 milhões para o município ao longo dos anos, a maioria enviada através de emenda individual geral. Essa, exige identificação de onde o dinheiro será gasto, e que se estabeleça um convênio com a União, que acompanhará o andamento da obra, por exemplo, para liberar os recursos aos poucos.
Já para emendas pix, o único meio indicado pelo governo federal para a prestação de contas do uso de emendas pix, no entanto, é a plataforma Transfere.gov, mas isso não é uma obrigação dos municípios. Bauru, por exemplo, marcou “ciência” dos 14 repasses e declarou informações sobre o que foi feito com o dinheiro em apenas quatro deles.
Sob o entendimento de que o dinheiro recebido pelas emendas pix passa a fazer parte dos cofres municipais logo após ser recebido, o Tribunal de Contas da União declarou no ano passado que a fiscalização caberia à cada Tribunal de Conta Estadual ou Municipal. Assim, a aplicação dos recursos e a prestação de contas é de total responsabilidade das Prefeituras.
Três pedidos de informação foram enviados para a Prefeitura de Bauru via Lei de Acesso à Informação acerca do que foi comprado ou pago com as emendas de Vicentinho, Hasselmann e Agostinho. Até o fechamento desta reportagem, o prazo legal para resposta ainda estava em andamento.
Caso a caso: da cultura à infraestrutura
Rodrigo Agostinho foi prefeito de Bauru entre 2009 e 2017. Dois anos depois de ter passado pelo governo municipal, ele se elegeu deputado federal e passou a enviar milhões em verbas para a cidade. No total, são R$ 7,5 milhões pagos por emenda individual geral em quatro anos. O ex-prefeito agora é presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) .
Suas emendas são um ponto fora da curva: os repasses e o destino de cada um deles são noticiados pela Prefeitura. Nenhuma das notícias cita, no entanto, quais desses repasses correspondem às emendas pix, o que dificulta a compreensão do que chegou no município sem convênio com o governo federal.
Só por transferência especial são R$ 1,05 milhões, que foram separados em porções menores. Segundo a Prefeitura, são R$ 250 mil para o Programa de Controle Ético da População Canina e Felina, e mais R$ 250 mil investidos para estímulo de artistas, através do Programa de Estímulo à Cultura do município.
O valor restante está identificado como para “aquisição de equipamento”, no entanto, o único documento encontrado se refere a compra de um micro-ônibus adaptado para transporte de pessoas com deficiência por R$ 405 mil. O contrato com a empresa Mascarello Carrocerias e Ônibus LTDA indica uso do repasse de Agostinho, mas com dois problemas: o número da emenda é diferente do que consta no Portal da Transparência, e a cláusula de pagamento do documento afirma que o equipamento será pago com recursos da Secretaria Municipal de Saúde.
Junto do ex-prefeito, Paulo Teixeira também enviou verbas para a cultura bauruense. O atual ministro de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar do Brasil destinou em 2021 e 2022, respectivamente, R$ 60 mil e R$50 mil para a Semana Mundial do Hip Hop de Bauru, uma das maiores da América Latina e comandada pela Prefeitura de Bauru e pelo Instituto Acesso Popular.
Idealizador e coordenador do evento, Renato Magú confirmou que o próprio Instituto buscou a verba por meio da assessoria do deputado. Um ofício do petista foi encaminhado para a Prefeitura ainda em 2021, indicando que a emenda deveria ser usada na edição seguinte da Semana de Hip Hop, já que naquele ano ela havia sido cancelada devido à pandemia de coronavírus. Segundo Magú, a organização viu o documento como necessário “para que eles [a Prefeitura] não dessem outra destinação que não fosse a Semana de Hip Hop”.
Apenas para Teixeira foram encontrados ofícios especificando que o dinheiro tinha endereço determinado. Além do que foi para cultura, R$ 300 mil estão custeando as obras de infraestrutura do Parque Primavera, antigo assentamento que o deputado visitou durante sua campanha eleitoral de 2018. A emenda foi enviada separadamente, R$ 150 mil em dois anos diferentes, e cada uma está sendo usada em um projeto de construção no bairro.
A Secretária de Obras de Bauru, Pérola Mota Zanotto, declarou que a primeira obra para pavimentação de mais de 2.000m² foi concluída recentemente, mas a verba de Teixeira não foi suficiente para cobrir os gastos e R$ 249,4 mil saíram do tesouro do município. De acordo com Pérola, as verbas de deputados sempre chegam ‘picadinhas’, o que dificulta a execução das obras. “A gente consegue fazer um pedacinho do bairro, [depois] outro pedacinho do bairro. Você nunca acaba, está sempre mexendo ali”, diz.
A segunda obra segue em andamento, e inclui drenagem pluvial além de pavimentação. A conclusão depende de uma drenagem que o município irá executar devido a um problema de ponto baixo no terreno, que acumularia águas da chuva no Parque Primavera.
Além dessa obra a parte, a Prefeitura também teve que colocar recursos próprios no projeto inicial. Dados do Portal da Transparência, no entanto, mostram que saiu mais dinheiro do tesouro do que da emenda parlamentar: foram empenhados R$ 146,5 mil referentes à emenda pix de Paulo Teixeira ao fornecedor Cristiano Martins Pietro ME, ao invés dos R$ 150 mil. A Secretária de Obras afirma que há um erro: “Eu acho que quem colocou no site, [que] está errado, porque o dinheiro do repasse a gente nunca altera”.

Também faltam informações sobre a reestruturação do Horto Florestal paga com verba da deputada Joice Hasselmann. A emenda de R$ 150 mil é uma das únicas que a Prefeitura declarou no Transferegov, mas os dados cadastrados são insuficientes para compreender se houve um projeto de reforma do Horto. É necessário baixar, por exemplo, cada uma das 26 notas fiscais e somar seus respectivos valores para concluir que todo o dinheiro da emenda foi gasto e superado em cerca de R$ 3 mil.
O cenário é diferente para os R$ 300 mil enviados por Carlos Zarattini. A construção de um Centro Comunitário no Jardim Nicéia era, e segue sendo, uma demanda dos moradores, que procuraram a vereadora Estela Almagro (PT) em 2021 para viabilizar a obra.
A vereadora afirma que já possuía proximidade com o deputado petista, e que Zarattini havia sinalizado a possibilidade de destinar uma verba às comunidades de Bauru, conforme divulgado pelo jornal Voz do Nicéia em agosto do mesmo ano. Para garantir o uso da emenda que veio por transferência especial na construção do Centro, no entanto, foi necessário reunião com o gabinete da prefeita Suéllen e com a Secretaria de Obras, de acordo com Estela.
De lá para cá, a obra ainda não saiu do papel. A Secretária Pérola afirma que foram necessárias correções nos projetos entregues à Secretaria. “No momento, a gente está atualizando a planilha orçamentária e em breve [o projeto] será licitado”, diz. Como presidente da Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara de Municipal, a vereadora Estela reitera que procurará os meios cabíveis para questionar o andamento do projeto caso a demora para a construção se estenda mais.
Para máquinas e equipamentos
Com o título de “cidadão bauruense”, Capitão Augusto foi o segundo mais votado à deputado federal pelos cidadãos bauruenses nas eleições de 2022. Ao lado da deputada estadual Dani Alonso, o PL tem fortalecido sua rede de influência política na região de Bauru e tem pretensões de lançar candidatura à prefeitura no ano que vem, conforme divulgado nas redes sociais do próprio Capitão.
Os R$ 250 mil de sua emenda são uma pequena parcela de todas as verbas já enviadas ao município. Desde que assumiu o cargo de deputado federal em 2015, são mais de R$ 1,7 milhões já pagos em emendas individuais gerais. A maior parte desse valor custeou obras de infraestrutura nos bairros Parque Giansante, Pousada da Esperança e Santa Tereza. Assim como com Agostinho, os recursos do Capitão viram notícia no site da Prefeitura, exceto o que foi enviado por transferência especial.
Mas para custear a compra de três minicarregadeiras, foi necessário somar à emenda pix do Capitão, recursos próprios do município e o repasse de R$ 400 mil feito por outro parlamentar também via transferência direta: Gilberto Nascimento. Antes mesmo que o dinheiro do deputado do PSC chegasse em Bauru, a Prefeitura abriu licitação dos equipamentos.
Este é um dos casos em que só é possível identificar o que será pago a partir do cruzamento de dados. O documento da Prefeitura que avisa a abertura de pregão eletrônico, um leilão virtual para empresas ofertarem serviços e produtos, exige que a nota fiscal do fornecedor indique as emendas, e seus respectivos números, como fonte de pagamento dos equipamentos. Os nomes dos deputados, no entanto, não são mencionados.
Quem também enviou verba para a compra de equipamentos em Bauru foram os parlamentares Vicentinho e Eli Corrêa Filho. Ambos ilustram as diferenças de transparência que ocorrem na prestação de contas de emendas pix.
Segundo declaração do deputado petista ao jornal JCNET em 2022, os R$ 100 mil via transferência especial deveriam ser gastos em máquinas de processamento de bambu para a população de artesãos do Horto Aimorés, assentamento na divisa entre o município e Pederneiras. Não foram encontrados documentos de licitação, contrato ou nota fiscal que indicassem o uso de sua emenda.
Já para a verba de R$ 300 mil de Corrêa Filho, há licitação no site da Prefeitura e nota fiscal cadastrada no Transferegov. A emenda do deputado custeou a compra de uma ambulância e parte de um segundo veículo. O restante do contrato de R$ 1,4 milhão foi pago com outros recursos, inclusive com dinheiro do programa de Castramóvel do município e das emendas dos deputados Orlando Silva e Capitão Augusto, conforme dados do Portal da Transparência de Bauru.
Orçamento secreto 2.0
Após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro de 2022 que declarou as emendas de relator (RP 9) como inconstitucionais, o orçamento secreto foi transferido para outras emendas. Mas pouca coisa mudou: o estudo da Transparência Brasil sobre as emendas pix mostra que a transferência especial foi, justamente, o meio encontrado pelo Legislativo para continuar a repassar dinheiro com dificuldades de serem rastreados e sem planejamento.
A procuradora Élida Graziane concorda, lembrando que só a identificação das maiores necessidades de estados e municípios e o planejamento de quanto e o que deve receber investimento primeiro possibilita efetividade dos gastos do orçamento público. “Diagnóstico, ordenação de prioridades e prognóstico é o bê a bá da gestão pública e privada”, aponta.
Considerando apenas os parlamentares que enviaram emendas pix para Bauru, eles reservaram, juntos, R$ 94.128.891 milhões na LOA 2023, segundo dados do Sistema Integrado de Orçamento e Planejamento (SIOP).
Relação de totais em emendas pix enviadas pelos parlamentares por ano
Os números consideram as verbas dos deputados Paulo Teixeira (PT), Eli Côrrea Filho (União Brasil), Carlos Zarattini (PT), Capitão Augusto (PL), Rodrigo Agostinho (PSB), Vicentinho (PT) e Gilberto Nascimento (PSC), e da deputada Joice Hasselmann (sem partido)
Nada foi empenhado ainda, mas através das minutas de empenho, documento que antecede o empenho em si, foi possível encontrar uma nova emenda pix de Paulo Teixeira para Bauru em 2023 no valor de R$ 180 mil, e outra de R$ 750 mil do deputado federal Miguel Lombardi (PL-SP). Não há dados sobre no que os valores serão usados.
Mesmo quando as informações sobre o destino da emenda e no que ela será gasta são identificadas, há outros problemas. Graziane afirma que a sociedade imagina ser pouco o orçamento que é definido pelo Legislativo, no entanto, “os parlamentares hoje têm mais margem de deliberação [sobre o dinheiro do governo federal] do que qualquer ministro de Estado”.
Ela declara, ainda, que é essa possibilidade de definir para onde o dinheiro vai que dita ‘as engrenagens’ da Política atual. “Eles querem liberar [emendas] catequizando [prefeituras] de uma certa forma e direcionando os apoiadores depois do que virão a ser as eleições nacionais”. As emendas pix enviadas para Bauru em 2022, por exemplo, entraram nos cofres da Prefeitura em julho, com a campanha eleitoral já em curso.
Ainda que a Prefeitura de Bauru apresente alguns mecanismos de transparência para o dinheiro que é recebido, ela não deixa de estar de fora desse jogo político e orçamentário. O cenário aponta para contínuo aumento dos recursos em emendas de transferência especial, o que, por consequência, fortalece ainda mais a dependência das prefeituras pelo Legislativo e pelas verbas que parlamentares só enviam de forma ‘picadinha’ aos municípios.








