Desde 2010, quando o termo começou a se popularizar, agentes de extrema direita têm se apropriado dessa teoria marginal, embora no início não fosse bem assim

Visto com bons olhos por entusiastas da tecnologia, o aceleracionismo é um dos ideais que norteiam a mentalidade dos magnatas do Vale do Silício; sem perceber, somos jogados às estruturas de ruptura dentro das redes (Foto: Inteligência Artificial – DALL-E)

Bruno Andrade

Um relatório feito pelo Observatório Judaico dos Direitos Humanos mostra que, entre janeiro de 2019 e junho de 2022, houve 169 casos de neonazismo ou antissemitismo documentados no Brasil. Esse fenômeno, porém, está longe de ser um caso peculiar do país. Em 2019, um atirador australiano fez uma transmissão ao vivo do massacre feito por ele em Christchurch, uma mesquita localizada na costa leste da Ilha Sul, na Nova Zelândia. A transmissão durou 17 minutos, sendo exibida praticamente em sua totalidade até ser derrubada pelo Facebook.

Pouco antes, o atirador havia divulgado o atentado em um manifesto no Twitter, no qual assumia a autoria da ação, se dizia impaciente e inconformado com a “invasão” de imigrantes no país, se denominava “etnonacionalista e fascista” e argumentava em torno de uma “aceleração” da destruição de “Estados falidos” por meio da violência, elencando líderes racistas e nacionalistas como seus heróis. Entre eles, figurava o nome de Renaud Camus, o teórico supremacista francês responsável pela ideia da “Grande Substituição”, publicada por ele em um livro homônimo de 2011. Na obra, Camus defende a teoria da conspiração de extrema direita de que uma “elite global” está conspirando contra a população branca da Europa para substituí-la por povos não europeus. 

Após o ataque, não demorou para que o atirador fosse santificado em chans neonazistas (espécie de fóruns anônimos) como um herói militante de uma subcultura que rapidamente tomou conta do mainstream. É de se pensar que, enquanto o capitalismo parecia ir, furiosamente, de encontro a crise financeira que o abraçou em 2008, os aceleracionistas diziam que não era necessário pará-lo, mas sim ir “mais rápido”. “Gostemos ou não, somos todos aceleracionistas agora”, diz Steven Shaviro, autor de No Speed Limit: Three Essays on Accelerationism (2015) [Sem Limite de Velocidade: Três Ensaios sobre o Aceleracionismo]. Em tempos politicamente impacientes, rodeados por ideais inconstantes, intempestivos e possivelmente revolucionários, o “aceleracionismo” parece mais relevante que nunca.

A extrema direita popularizou ideias aceleracionistas principalmente em blogs, no inicio dos anos 2000 e, posteriormente, em comunidades no Orkut (Foto: Inteligência Artificial – DALL-E)

As campanhas disruptivas que marcaram as eleições do norte-americano Donald Trump, em 2016, e de Jair Bolsonaro, em 2018 – lembrado, principalmente, por suas escolhas e declarações políticas maníacas e anti-governo – tem sido vistas por muitos observadores como as primeiras expressões, em escala global, de uma política de governo aceleracionista. Nos últimos anos, essas ideias parecem ressoar e circular em todo o lugar: nas redes sociais não demora para que comentários anti-sistema e observações a-políticas surjam, pedindo, literalmente, “a cabeça” de vários parlamentares. 

Segundo Benjamin Noys, autor de Malign Velocities: Accelerationism and Capitalism (2014) [Velocidades Malignas: Aceleracionismo e Capitalismo] que cunhou o termo “aceleracionismo” pela primeira vez, ideais aceleracionistas estão ao lado da extrema direita, em blogs da alt-right – como o Iron March –, mas também na esquerda, nas parcelas pró-tecnologia. Contudo, aceleracionistas de direita parecem ter mais sucesso nas articulações contemporâneas. “O aceleracionismo sempre pareceu ter uma resposta”, diz Noys, em relação às contradições do sistema capitalista.

“A gente pode imaginar um pré-aceleracionismo, uma formulação teórica aceleracionista acontecendo na década de 1990, que por sua vez é um desenvolvimento sobre alguns temas da política francesa após 1968, sobretudo Deleuze, Lyotard e Baudrillard, que vão inspirar esse grupo”.

Explica Victor Marques, doutor em Filosofia e professor da Universidade Federal do ABC

Aceleracionismo, na prática, é um termo relativamente novo, que parece ganhar corpo e, mais propriamente, verniz político em meados dos anos 2010. A sua ideologia, porém, não é essencialmente nova: o aceleracionismo poderia se chamar “cataclismo” – como foi, no passado –, forma similar a que Karl Marx se referia, em meados dos anos 1850, às rupturas sociais que precisavam e, inevitavelmente, deveriam acontecer. Contudo, ao longo das últimas décadas, a tecnologia e boa parte do mundo parecem ter andado mais rápido. Padrões de trabalho, ciclos políticos, tecnologias cotidianas, hábitos e aparelhos de comunicação, renovação das cidades, aquisição e o descarte de mercadorias – tudo tem acelerado.

Enquanto isso, ao longo do mesmo período, praticamente imperceptível a nós, os aceleracionistas deixaram pouco a pouco de ser apenas um dispositivo ficcional para se consolidarem num movimento intelectual: uma nova maneira de pensar sobre o mundo contemporâneo e seu potencial, disruptivo ou destrutivo. “Eles estavam querendo colapsar a distinção entre teoria e ficção – o que eles chamam de ‘teoria-ficção’”, diz Victor Marques, professor da Universidade Federal do ABC, doutor em Filosofia pela PUC-RS e diretor de desenvolvimento da revista Jacobin.

O aceleracionismo não é, especificamente, um pensamento de extrema direita. Existem, na verdade, “aceleracionismos”, como diz Marques. “É difícil falar de um movimento aceleracionista com algum nível de coordenação e centralidade”, explica o professor. Algumas ideias da “nova esquerda” vem sendo inspiradas por trabalhos de Nick Land, filósofo britânico considerado o principal popularizador desse pensamento, embora, no início dos anos 1990, quando seus escritos a esse respeito começaram a repercutir na Universidade de Warwick, onde trabalhava como professor e pesquisador, o termo usual fosse mais próximo do “cataclismo” de Marx. Embora Land, à época, já não fosse um pensador de esquerda, os escritos de Marx acerca da tecnologia e o respectivo entendimento de uma modernidade que se desintegrava pairavam entre suas referências. Como o pensador alemão escreve em Manifesto do Partido Comunista, “tudo que é sólido desmancha no ar”.

No final de 1995, Land e Sadie Plant, filósofa conhecida por seus trabalhos sobre o ciberfeminismo e estudos em cibercultura, fundaram o Cybernetic Culture Research Unit (CCRU), ou Unidade de Pesquisa sobre Cultura Cibernética, que existiu por pouco mais de 5 anos. O grupo, que era composto também por outros teóricos, como Ray Brassier e Mark Fisher – ainda em período de formação, sendo orientado por Plant –, chamava a atenção por dois fatores: primeiro, não era um grupo formalmente registrado na instituição, se assemelhando mais a uma equipe de debate e laboratório de escrita sobre cultura; segundo, era composto por pessoas que, aparentemente, tinham ideias bastante diferentes, mas que convergiam acerca da intensificação das potencialidades destrutivas do sistema capitalista. Depois que o grupo ruiu, no início dos anos 2000, quando Plant deixou o CCRU e, respectivamente, a Universidade de Warwick para se dedicar à escrita, Land abandonou a academia e se mudou para Xangai, na China, onde vive até hoje.

O CCRU foi um grupo de pesquisa e debate da Universidade de Warwick, que estudava a cultura (Arte: Bruno Andrade)

No CCRU, Land e os demais estavam mais interessados em pensar na cultura, principalmente através da ficção científica, sob uma forma moldada pela própria ficção – itens ficcionais que vinham se tornando realidade, como o mundo cibernético previsto, em linhas gerais, por William Gibson em Neuromancer (1984) ou o mundo colapsado pela publicidade e o desejo constante de consumo transcrito em Crash (1973), de J.G. Ballard. Tudo isso, no CCRU, tinha nome: “hiperstição”, profecia autorrealizável que resumia o capitalismo e sua constante intensificação destrutiva, na qual modelos de dinheiro e pagamento – uma das principais forças de domínio sistematizadas – pareciam, também, um espaço em disputa.

“Uma coisa que eu nunca vi ninguém mencionar, mas que para mim parece óbvio, é que o bitcoin é um exemplo de hiperstição que funciona justamente pelo hype especulativo”, diz Victor Marques. “É uma coisa que aparece, primeiro, quase como uma peça de ficção científica, em alguns textos cyberpunks sobre como funcionaria o dinheiro no futuro, em um mundo totalmente virtualizado, depois é meio que gestado nas comunidades cypherpunks [grupo de ativistas interessados em criptografia de dados], da qual o Peter Thiel e o Elon Musk faziam parte, porque estavam na criação do PayPal, um dos primeiros sistemas de pagamento digital”, complementa Marques.

Aceleracionistas acreditam na fusão entre humanos e máquinas; quando se trata de política, tendem a priorizar as máquinas em detrimentos de humanos, pois entendem que a política humana está falida (Imagem gerada por Inteligência Artificial – DALL-E)

Os aceleracionistas, contudo, argumentam que a tecnologia, particularmente a tecnologia computacional, e o capitalismo, especialmente em sua versão globalizada e neoliberal, que ganhou forma mais agressiva pós-1990, deveriam ser massivamente acelerados – seja porque essa seria a melhor maneira de empurrar a humanidade para frente, seja porque não há outra alternativa.

Frequentemente, eles apoiam uma futura fusão entre digital e o humano, a desregulamentação dos mercados e a redução drástica do governo. Os aceleracionistas, de direita ou de esquerda, acreditam que a revolta social e política tem valor em si mesmas. Rotineiramente, entram em confronto com todas as demais ideologias que têm se preocupado em reverter o já altamente disruptivo mundo contemporâneo, cujo ritmo, ao que tudo indica, é difícil de acompanhar.

Para alguns entusiastas dessa filosofia à margem, como Peter Thiel, magnata do Vale do Silício e criador do PayPal, a democracia se converteu em um erro atroz – “há pouca esperança de que o voto torne as coisas melhores”, disse Thiel em 2009. Antes disso, em 2004, Thiel escreveu que o 11 de Setembro “assinalou o fracasso iluminista”. Ao seu lado figura Mencius Moldbug (pseudônimo de Curtis Yarvin), cientista da computação, blogueiro neorreacionário e empreendedor de start-ups também do Vale do Silício, que se popularizou, ao lado de Nick Land, como pensador do chamado “Iluminismo das Trevas” – uma alternativa clara às ideias iluministas clássicas –, em que se defende que reações a fim de apressar o fim do status quo, persononificadas em figuras como Trump, Bolsonaro ou em movimentos como os que resultaram no Brexit, no Reino Unido, deveriam ser atitudes apoiadas pelos aceleracionistas.

“Se Thiel reina soberano, então Moldbug e Land são seus escudeiros, prontos para defender certas comunidades nas cercanias do Reddit e do 4Chan”, escreve Yuk Hui, filósofo chinês, no ensaio Sobre a consciência infeliz dos neorreacionários (2017). “No Vale do Silício”, diz Fred Turner, professor de Comunicação na Universidade de Stanford, “o aceleracionismo é parte de todo um movimento que está dizendo, ‘nós não precisamos mais de política tradicional, podemos nos livrar da esquerda e da direita, basta que entendamos a tecnologia direito’”.

“A postura libertária dominante sobre as fronteiras é uma aposta tácita de que o Brasil oferece um contexto melhor para a liberdade econômica do que os Estados Unidos. Na era do Bolsonaro eles podem até estar certos” (Imagem: Reprodução/Twitter)

Desde que deixou a universidade, Land tem publicado proficuamente na internet sobre a suposta obsolescência da democracia contemporânea. Em alguns textos, ele argumenta de forma favorável sobre a “seleção natural capitalista”, a teoria pseudo-científica de que diferentes raças diferem “naturalmente” no mundo pós-moderno, e que umas são melhores que outras. Abertamente, ele apoiou em sua conta no Twitter (@Outsideness) a eleição de Donald Trump, e saudou a vitória de Bolsonaro nas eleições brasileiras de 2018.

“Tudo o que podemos realmente fazer é votar naqueles que são odiados pela esquerda, como Trump, Orban e Bolsonaro. Por mais falho que seja, obrigou a esquerda internacional a revelar um pouco seus planos. Isso é tudo que podemos fazer por enquanto”, escreveu um seguidor de Land, em resposta a uma publicação sua de 2020, em que apoiava Bolsonaro.

A democracia, para os aceleracionistas de direita, é apenas um mecanismo de distração, e não deve ser levado a sério (Imagem: Reprodução/Twitter)

Em 1972, o filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Félix Guattari publicaram O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia (1972). Esse livro inquietante e ambíguo, que se propunha, principalmente, a dar uma nova resposta ao capitalismo – sob a ótica da “desterritorialização”, motivados pelas manifestações de Maio de 1968 na França –, serviria de base a várias discussões no CCRU. Inevitavelmente, essa referência permaneceria e seria fundamental na articulação do pensamento de Nick Land.

Para Deleuze e Guattari, em vez de simplesmente se opor ao capitalismo, a esquerda deveria reconhecer sua habilidade tanto para liberar quanto para oprimir pessoas, e deveria procurar fortalecer essas tendências anárquicas, “para ‘acelerar o processo’”. Não muito tempo depois, na obra seguinte publicada em conjunto pelos dois autores – que dá sequência às problemáticas da primeira –, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (1980), eles advertiram, em espécie de mea-culpa, que “o excesso de capitalismo poderia levar a sociedade aos ‘buracos negros’ do fascismo e do niilismo”. Benjamin Noyz também escreve que, sob a ótica aceleracionista, o futuro “sempre é prometido e está sempre fora do alcance”. Ele também acusa o movimento de oferecer “falsas soluções” para problemas econômicos e tecnológicos atuais.

“Há uma uma rachadura estrutural e a única maneira de dar conta desse problema é por meio da ação coletiva política, com a organização de grandes projetos comuns que possam democratizar o poder. Na nossa sociedade, isso significa, sobretudo, democratizar a economia, que escapou de qualquer tipo de controle político e justamente por isso perde autoridade frente às pessoas comuns”,

diz Victor Marques

“Queremos que as coisas acelerem, queremos que as coisas piorem nos Estados Unidos. E a partir desse ponto, em virtude do caos que se segue, isso naturalmente apresentaria algumas oportunidades para nós, surgindo para aqueles que estão organizados e prontos, para tirar proveito disso”, afirmou Rinaldo Nazzaro, neonazista líder do grupo de ódio aceleracionista The Base, em uma chamada gravada em 2019 e publicada pela BBC

Como Nazzaro, muitos aceleracionistas invadiram o Capitólio, nos Estados Unidos, e alguns outros foram a Praça dos Três Poderes, em Brasília, no ataque golpista em 8 de Janeiro. Ainda assim, é difícil de assimilar: qual o limite entre uma política extremista e a alienação? Muitos, provavelmente, não sabem o que é o aceleracionismo.

O cerne da questão, porém, gira em torno do constante convívio com os ideais aceleracionistas, frequentemente entregues a nós via plataformas digitais – que soam como os melhores experimentos aceleracionistas das últimas décadas (o que melhor do que entregar conteúdos conflitantes aos usuários, intensificar discussões e, no fim, alegar que o algoritmo é responsável por tudo?). Por isso é preciso saber: agir sobre a democracia não parece nenhum grande obstáculo às redes, que comumente preferem um ambiente intensificado de ruptura. No aceleracionismo, encontram a melhor forma de defender esses ideais.

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