Rita Lee e Gal Costa marcaram época e entraram para a história como dois dos maiores nomes da música popular brasileira
Por Beatriz Ribeiro e Esther Ferreira

Em 1945, no coração da Bahia, nasceu Maria da Graça Costa Penna Burgo, em um ambiente simples, mas acolhedor. Persistente e determinada, a menina resolveu buscar seu sonho de seguir na carreira artística e com a voz cativante tão característica, não demorou para que seu talento fosse reconhecido.
Dois anos após seu nascimento, no ano de 1947, também vinha ao mundo uma garota com os mesmos sonhos e a mesma força. Rita Lee Jones, nascida na capital paulista, em uma família que valorizava a arte e a cultura, encontrou inspiração desde cedo nas melodias que ouvia nos discos de vinil que seu pai colecionava. A atmosfera criativa foi um dos motivos para que encontrasse o seu lugar na música.
Separadas por dois anos, mas predestinadas a se tornarem dois dos maiores nomes da música brasileira, o Brasil as perdeu nos últimos meses. Gal Costa e Rita Lee faleceram, respectivamente, em novembro de 2022 e maio de 2023. Ambas já deixam saudades em uma legião de fãs e especialistas que lamentam a perda das duas estrelas.
Rita Lee, conhecida como a rainha do rock, começou sua carreira em um dos grupos pioneiros do movimento tropicalista. Sua atitude rebelde e letras provocativas fizeram dela uma figura icônica da contracultura brasileira. O impacto cultural da artista se manifestou na quebra de tabus, na representatividade feminina no rock e na abertura de espaços para a expressão artística irreverente.
Por sua vez, Gal Costa era doçura. A cantora era conhecida por ter uma das vozes mais poderosas e versáteis da música brasileira e emergiu, assim como Rita, como parte do movimento tropicalista. Gal levou a Música Popular Brasileira (MPB) para o mundo e se tornou conhecida por sua interpretação intensa e emocional.
As duas tinham como principal habilidade a possibilidade de se reinventar ao longo dos anos, mantendo sua relevância e se adaptando às mudanças na cena musical. Embora Rita Lee seja mais associada ao rock e Gal Costa à MPB, ambas expandiram os limites dos gêneros em que atuaram, explorando novas sonoridades e estilos. As personalidades fortes e autenticidade artística de ambas abriram caminhos para artistas femininas na indústria da música brasileira, inspirando uma geração de mulheres a seguirem seus sonhos e se expressarem livremente.

MEU NOME É GAL COSTA

Gal Costa, cujo nome de batismo é Maria da Graça Costa Penna Burgos, nasceu em Salvador, Bahia, no dia 26 de setembro de 1945. Foi uma das cantoras mais icônicas e influentes da música popular brasileira. Sua carreira é marcada por sua voz única e versatilidade artística, que abrange diversos gêneros musicais, como bossa nova, MPB, tropicália, música experimental e pop.
Gal começou sua trajetória musical no final da década de 1960, quando participou do movimento tropicalista, que revolucionou a música brasileira. Ao lado de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e outros, Gal Costa ajudou a quebrar paradigmas e expandir as fronteiras da música nacional. Seu primeiro álbum, “Domingo”, lançado em 1967, foi uma parceria com Caetano Veloso e trouxe sucessos como “Coração Vagabundo” e “Que Pena”.

Ao longo dos anos 1970, Gal Costa consolidou sua carreira solo e lançou diversos álbuns aclamados, como “Legal” (1970), “Fa-Tal – Gal a Todo Vapor” (1971) e “Índia” (1973). Sua voz potente e sua interpretação emocionante conquistaram o público e a crítica, tornando-a uma das principais referências da MPB.
Na década de 1980, Gal Costa explorou novas sonoridades e experimentou com o pop e a música eletrônica. Seu álbum “Fantasia” (1981) foi um marco nessa fase, apresentando uma Gal Costa mais sofisticada e contemporânea. Ela continuou a se reinventar ao longo das décadas seguintes, lançando álbuns aclamados como “Gal Tropical” (1989), “Mina d’Água do Meu Canto” (1995) e “Gal Bossa Tropical” (2002). Além de sua carreira musical, Gal Costa também se destacou como atriz, participando de peças de teatro e filmes. Ela recebeu vários prêmios ao longo de sua carreira, incluindo o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira por “Estratosférica” (2015).
Paulo Alves (51), professor de História da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), localizada na região metropolitana baiana, contou um pouco de como foi a experiência de comparecer a um show da cantora. Gal se apresentou em maio de 1998 no Parque do Ibirapuera e o historiador disse que jamais se esquecerá da performance.
“Na época, estava com 26 anos e no último ano da faculdade. Fui com um grupo de amigos assistir ao show. Lembro como fiquei impactado com a voz da Gal, mesmo com o mar de pessoas e estando longe do palco. A participação especial de Luiz Melodia e Zeca Baleiro abrilhantaram ainda mais a apresentação. Jamais vou me esquecer. Na época, ainda não havia a opção de ouvir músicas no Youtube ou no Spotify, mas se tivesse, teria ouvido os discos dela por semanas”, relembra Paulo.
E, no mesmo sentido, a estudante de Direito, Nicole Mendes, de 23 anos, compartilhou como a potência musical de Gal Costa vem marcando sua juventude. “Ouvir Divino Maravilhoso na voz dela já foi remédio para as mais distintas dores. Minha mãe sempre ouvia sua discografia quando eu era menor ao fazer a faxina e essa foi uma das várias músicas que me marcaram. Acho que os versos ‘É preciso estar atento e forte / Não temos tempo de temer a morte’, cantados pela Gal, é um dos meus refrões favoritos da vida toda”.
Com quase 30 anos de diferença, Paulo e Nicole evidenciam que a voz inconfundível e a presença de palco de Gal Costa atravessa décadas a tornando uma das artistas mais queridas e respeitadas do Brasil. Sua obra continua a inspirar gerações de cantores e compositores, e seu legado é eternizado como um dos pilares da música brasileira contemporânea.
A RAINHA DO ROCK

Nascida no dia 31 de dezembro de 1947, em São Paulo, Rita cresceu rodeada de fortes influências musicais.Logo na adolescência, formou uma banda e explorou a cena musical emergente de São Paulo, tocando em festas e clubes. Nesse momento, Rita descobriu o rock ‘n’ roll e se apaixonou pelo ritmo. A banda, então, atravessou diversas mudanças em sua formação até que se tornasse a prestigiada “Os Mutantes”. Eles foram pioneiros na música psicodélica no Brasil, mesclando elementos do rock, pop e música experimental. Com a voz poderosa de Rita no centro do palco, a banda ganhou milhares de seguidores e conquistou um lugar de destaque na cena musical brasileira.

Rita sentia um desejo interior de explorar seu próprio caminho musical. Assim, decidiu seguir carreira solo. A coragem e o talento a levaram a lançar vários álbuns de sucesso, incluindo “Fruto Proibido” e “Lança Perfume”. Suas letras criativas e provocativas capturaram a essência da cultura e da sociedade brasileira, fazendo com que suas músicas se tornassem verdadeiros hinos para uma geração.
Além de seu sucesso como cantora e compositora, Rita Lee também brilhou como uma figura icônica do movimento de contracultura dos anos 1960 e 1970. Ela expressou sua personalidade vibrante e irreverente através de suas roupas, cabelo colorido e atitude desafiadora. Rita era uma mulher à frente de seu tempo, desafiando as convenções e abraçando sua individualidade.
Seu característico jeito contraventor fez com que Rita se mantivesse atual e conversasse com a atual geração. A jovem estudante de 23 anos, Natália Romito, revelou como a cantora é uma de suas maiores inspirações.
“Minha família sempre escutou muita música brasileira de todo o tipo e com a Rita Lee não foi diferente. Escutava muito ela quando criança, achava as músicas encorajadores por falarem sobre tabus de uma forma divertida e leve. Sempre vi a Rita como uma referência de mulher revolucionária, e ao longo do tempo, fui conhecendo mais o trabalho dela e admirando toda sua trajetória”, compartilhou Natália.
Ao longo dos anos, Rita Lee enfrentou altos e baixos em sua vida pessoal e carreira, mas sua paixão pela música nunca se desvaneceu. Assim, como seu amor por seu marido e companheiro de vida, Roberto de Carvalho. Também artista e compositor, Roberto ajudou Rita a se reinventar e a experimentar novos estilos musicais, explorando diferentes gêneros e colaborando com diversos artistas, sem nunca roubar seus holofotes.
Fã também do casal, Natália Romito revela como a parceria do casal também foi uma inspiração na hora de declarar seu amor para seu namorado. “Das diversas músicas da Rita que me marcaram, sempre vou lembrar com carinho das que ela escreveu com o Roberto e acabei mandando para meu namorado como uma forma de declarar meu amor. A relação e parceria deles sempre foi uma referência para mim também”.
Apesar de sua obra ter sofrido com a vigilância política ao chamar a atenção da família, da igreja e do Estado em tempos de repressão e ditadura, Rita Lee é tida como revolucionária e uma das maiores artistas e mulheres da história cultural do país.
“Ver uma mulher cantando rock, que sempre foi um gênero majoritariamente masculino, e se posicionando politicamente, principalmente no período da ditadura, é pra mim, um sinônimo de coragem. A Rita fez eu criar e sustentar a coragem de ser quem eu sou”, reflete Natália.
ENCONTROS DE VOZES
E entre as diversas semelhanças, Gal e Rita cultivaram uma admiração mútua. No livro autobiográfico de Rita, chamado Rita Lee: Outra Autobiografia, a Rainha do Rock escreveu um capítulo em homenagem póstuma à Gal. O livro, que conta como foram os últimos anos da vida de Rita, foi lançado no último dia 22 de maio, após a morte da cantora. No capítulo, Rita lamenta a morte de Gal em novembro de 2022 e conta de forma carinhosa algumas lembranças de seus encontros em vida.
“O sorriso maroto de Gal nos bastidores do show dos Doces Bárbaros, no Anhembi, em 1976. Com Gil, Caetano e Bethânia, ela cantava uma música dedicada a mim. Eu, que não fazia ideia, quase desmaiei de emoção. No backstage, ela me contou que era uma das compositoras da canção”.
Rita Lee no livro Rita Lee: Outra Autobiografia (2023)
Gal já gravou uma das canções mais famosas de Rita, “Ovelha Negra”. “Ela me mandou mensagem dizendo que gravaria a música. Entretanto, pediu licença para trocar na letra ‘pai’ por ‘mãe’. Ela me explicou que o pai havia sido ausente e que, por isso, se sentiria mais à vontade cantando para a mãe dela. Respondi que ela poderia fazer o que quisesse”, compartilhou Rita no livro.
Em alguns de seus encontros, Rita e Gal se apresentaram juntas na edição de 1991 do Rock in Rio e na gravação do programa Som Brasil, especial pelo aniversário de São Paulo, em 2008.
Antes de sua morte, em novembro de 2022, Gal Costa já havia virado nome de avenida em Salvador. Em 2023, a artista foi homenageada na abertura do Carnaval da cidade. O projeto Quinta do Balancê desfilou com um trio elétrico no circuito Barra-Ondina reunindo três cantoras diretamente influenciadas por ela, Ana Mametto, Márcia Short e Carla Visi, que cantaram os grandes clássicos da carreira de Gal.
Por sua vez, Rita Lee foi eternizada nas ruas de São Paulo. Um grupo de três artistas plásticos, Paulo Terra, Pedro Terra e Eraldo Moura, se reuniram para fazer uma homenagem a cantora na Vila Mariana, bairro onde a artista nasceu e cresceu em São Paulo.
Paulo Terra relata que escutava as canções de Rita desde a adolescência e, após a morte da cantora, decidiu celebrar o legado dela. “Fomos até a Avenida Domingos de Moraes para tentar achar e conseguimos um espaço bacana em frente ao Metrô Vila Mariana. Com autorização do proprietário do imóvel, pudemos eternizar a Rita que foi uma das maiores cantoras do país”.

Quem também fez questão de homenagear as duas estrelas recentemente foi Gilberto Gil. Em 30 de junho, Gil realizou o show “Nós, a gente” ao lado de seus filhos e netos, na Concha Acústica de Salvador. O cantor cantou clássicos da discografia de Gal e Rita.
Paulo Alves esteve presente e relatou que Gil cantou “Barato Total”, de Gal Costa, e que sua filha, Preta Gil apresentou “Vá se benzer”, parceria dela com Gal. De Rita, o cantor perfomou “Ovelha Negra” e “De leve (Get Back)”. Segundo Paulo, o momento foi emocionante.

Seja através do amor dos milhares de fãs que ainda consomem o trabalho de ambas as artistas ou das mais diversas homenagens e tributos, a certeza que fica é que o legado e memória de Rita Lee Jones e Maria da Graça Costa atravessam regiões e estarão eternamente na história da música brasileira.
