Como o jornalismo afeta a vida das pessoas fora dos grandes centros? Confira a luta histórica da imprensa nas pequenas cidades.

Mariana Fabiano
Giovana Dal Posso

Primeiro jornal surgiu quando a cidade completava 25 anos de existência. Foto: Giovana Dal Posso

Quando se pensa na rotina do jornalismo, a primeira coisa que vem à cabeça da maioria são grandes redações em cidades populosas, profissionais em ritmos frenéticos, engarrafamentos,  e tudo mais que pode ser ligado às capitais. Essa associação não é por acaso, já que é assim que a mídia e os profissionais descrevem (e devaneiam) com a profissão. 

Mas seu irmão menos glamouroso ainda resiste: o jornalismo do interior. Marcado pela proximidade com o cidadão, ele carrega o papel de muitas vezes ser o único meio de informação sobre notícias locais, não permitindo que a região fique deserta de notícias, ou seja, com uma escassez de produções jornalísticas locais. 

Um forte exemplo de jornalismo interiorano acontece no  município de Santa Cruz do Rio Pardo, localizado no oeste paulista. Sua história está fortemente ligada a imprensa, que estava presente desde seus primórdios.

 Santa Cruz do Rio Pardo possui quase 50 mil habitantes. Foto: Giovana Dal Posso

A 26 quilômetros de Ourinhos, vizinha de Ipaussu, São Pedro do Turvo e Bernardino de Campos, Santa Cruz do Rio Pardo é um dos mais de 600 municípios do Estado de São Paulo. A história da cidade começa com a habitação de indígenas coroados, assim foram nomeados pelos portugueses por usarem coroas de pluma na cabeça. 

No começo do século XIX, com a chegada de migrantes de Minas Gerais, foi formado o povoado da Capela de São Pedro. Nas margens do Rio Pardo, uma grande cruz foi plantada, cercada por tochas e velas que a iluminavam de noite, a fim de espantar os povos originários da região. Assim nasceu Santa Cruz do Rio Pardo. 

Na década de 1870, a região detinha um número significativo de habitantes, contando também com as pessoas em situação de escravidão do local. Em 1896, houve a primeira tentativa da Câmara Municipal da Vila de transformar Santa Cruz do Rio Pardo em cidade. O pedido foi negado por motivos legais, e apenas em 19 de dezembro de 1906 ganhou o título de cidade. 

Com o trabalho escravo, junto a Estrada de Ferro de Sorocaba, Santa Cruz se tornou uma grande exportadora de café. Na década de 1940, também se destacou por conta da sua produção de alfafa, que era uma das maiores do estado de São Paulo. Porém, a agricultura entra em decadência na década seguinte, e a estrada de Sorocaba é desativada.

A principal fonte de economia da cidade são as indústrias calçadistas. Sendo a quarta maior produtora de calçados do Estado, Santa Cruz do Rio Pardo tem uma produção diária de 25 mil pares. Além disso, também é responsável por 25% do arroz consumido em São Paulo. 

Primeiro jornal de Santa Cruz. 
(Foto: Coleção Digital de Jornais e 
Revistas da Biblioteca Nacional)

25 anos após sua fundação, em 1895, a cidade ganhou seu primeiro informativo: ‘O Paranapanema’, com periodicidade semanal. Não há informações sobre o tempo circulado ou suas edições do periódico. 

Menos de 10 anos depois, em 1902, o ‘Correio do Sertão’ foi lançado com o propósito de ser independente, não partidário e imparcial – falhando nesses objetivos pouco mais de um mês depois de seu lançamento.

‘O Progresso’ (1904), ‘Correio de Santa Cruz’ (1908), ‘Cidade de Santa Cruz’ (1909), ‘A cidade’ (1922), ‘Garoto’’ (1935) e ‘A Cidade Comercial’ (1939), foram apenas alguns das dezenas de jornais já publicados na cidade.

Em 1977, durante a ditadura militar, surgia, em uma cidade de pequeno porte do interior paulista, o jornal que teria um papel na luta pela liberdade da imprensa no país. O Debate nasceu em Santa Cruz do Rio Pardo, criado por Sérgio Fleury, quando tinha apenas 17 anos. 

Mas a história do Santa Cruzense com o jornalismo começou ainda antes. Aos 9 anos, o jornalista criou “O Furinho”, jornal que saía uma vez ao mês e era feito de forma despretensiosa pela criança que já sabia qual profissão queria seguir para a sua vida. 

Sérgio conta que, assim que o  jornal Debate surgiu, ele era responsável por toda a produção. “Durante muitos anos, fui redator, repórter, fotógrafo, impressor, desenhista e até distribuidor do jornal”, relembrou o jornalista. 

Em uma época em que todos os jornais da cidade eram comandados por partidos e grupos políticos, Sérgio procurava desenvolver uma imprensa livre e independente na cidade. O que começou na garagem dos pais do jornalista, se tornaria o jornal pioneiro da região a ser impresso em cores e ter uma sede própria. 

“Hoje, em razão do avanço das redes sociais e da internet, o jornal está sendo editado em formato digital”, esclarece o jornalista. O Debate está presente nas redes sociais, onde tem um bom alcance na região. “Publicamos uma reportagem sobre uma empresária de 93 anos que comanda uma rede de restaurantes em Ourinhos. Para nossa surpresa, no Facebook a publicação passou de 4 milhões de visualizações”, comenta Fleury, sobre uma recente publicação. 

Durante a história do jornal, diversas denúncias dadas pelo veículo conseguiram ultrapassar as páginas impressas e conquistar mudanças para a população de Santa Cruz do Rio Pardo e região. 

No ano de 1980, o jornal denunciou a falta de água em alguns bairros da cidade. “No dia 5 de março de 1981, uma multidão compareceu à Câmara para exigir uma solução. Os vereadores, porém, encerraram mais cedo a sessão, dando início a um tumulto histórico. Centenas de pessoas depredaram o prédio da Câmara, a sede da Sabesp, a prefeitura e parcialmente a casa do então prefeito”, recorda o jornalista. A matéria que inicialmente saiu no Debate, foi parar nas manchetes de outros jornais, como o Jornal Nacional. 

Sérgio foi chamado pela polícia para prestar depoimento, pois sua manchete teria ameaçado a Lei de Segurança Nacional. “Foi um acontecimento histórico que resultou numa nova política da Sabesp, na ampliação da rede de água e esgoto e da adoção de uma tarifa social mais justa”, conta o jornalista. 

Para Sérgio Fleury, o caso mais emblemático do jornal foi quando houve um confronto direto com um  juiz de Direito de Santa Cruz do Rio Pardo. “Começou em 1992, quando uma informação alimentava a campanha eleitoral na cidade. Era a dívida bancária milionária de um candidato, cujos números eram superiores ao do orçamento municipal”, contextualiza o profissional. 

A reportagem que produziu a respeito foi censurada, mas como o jornalista resistiu e continuou com a investigação, foi processado. Apesar do embate, Sérgio conseguiu fazer com que o Tribunal de Contas do Estado proibisse o município de continuar pagando o aluguel do Juiz. Com esse feito, o jornalista foi condenado à prisão. A repercussão do caso foi nacional. 


“Minha prisão foi irregular e o juiz finalmente concedeu minha liberdade numa terça-feira, logo após a coluna na  ‘Folha de S. Paulo’ de Clóvis Rossi, num texto em que comparou a minha situação a Macondo, cidade fictícia do romance de Gabriel Garcia Marques”, relembra Sérgio.  Existindo a 45 anos, vindo de uma pequena cidade do interior, o Debate constituiu uma importante parte da história da imprensa brasileira.

Com as mudanças e a modernização do cenário da imprensa, quem não as acompanha, acaba ficando para trás.  Além do Debate, o município conta atualmente  com apenas mais um jornal – e o único impresso: Jornal Atual

Criado em 2014 pelo paulistano Renan Alves, que veio estudar no município, o Atual nasceu após um período de experiência em um veículo que acabou fechando. Em entrevista, ele conta que a decisão principal foi de colocar o jornal em distribuição gratuita, atingindo assim diversos públicos e classes sociais. Em 2016 foi a vez de um novo passo: o lançamento do portal do Jornal Atual, com notícias regionais, nacionais e Santa Cruz do Rio Pardo. 

Com o passar dos anos, o cenário foi mudando e os jornais impressos foram acabando, dando espaço às páginas de notícias nas redes sociais. Conforme levantamento realizado pela reportagem, a maioria da população que acompanha as notícias da cidade, as consome por meio delas.

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O acesso à informação de qualidade é essencial para a manutenção da democracia. Apesar de necessário, tal direito ainda é negado a diversas regiões do Brasil. Segundo levantamento do Atlas da Notícia de 2021, 29,3 milhões de brasileiros ainda vivem em municípios que sofrem de escassez de notícias locais. O número equivale a 13,8% da população brasileira. 

São quase 3 mil cidades vivendo na situação conhecida como deserto de notícias. Dubes Sônego Jr., jornalista e coordenador do Atlas, explica o significado do termo jornalístico: “deserto de notícias se refere a cidades que não tem nenhum veículo jornalístico produzindo notícias locais”. O jornalista ainda reitera que mais da metade das cidades brasileiras vivem nessa falta de conteúdos jornalísticos próprios. 

Com menos habitantes, algumas cidades têm consequentemente menos escala de leitores e anunciantes, o que dificulta a produção jornalística nesses lugares. “Nesses casos, as produções são mais feitas por amor do que por dinheiro. É difícil você ter uma remuneração razoável em cidades muito pequenas”, esclarece Dubes. 

Sem o trabalho jornalístico de qualidade, os desertos de notícias sofrem de um esvaziamento nos debates políticos por conta da falta de um ponto de apoio na realidade: a verdade factual, coletada pelo jornalismo. “Se você não tem alguém para fazer todo esse processo de avaliação da realidade, o local fica prejudicado e a circulação de informações fica prejudicada”, explica o jornalista. 

A chegada da internet facilitou e barateou a distribuição de notícias. Ao mesmo tempo, também mudaram a forma que as propagandas e anúncios publicitários são distribuídos. Antes, era nos jornais que as marcas achavam seu público. Com essa mudança, os veículos jornalísticos foram perdendo uma parte de seu financiamento. “Você tem esses dois lados: por um lado barateou a distribuição [jornalística] e, por outro lado, desmontou o modelo de negócios que existia no jornalismo”, finaliza Dubes.

Buscando entender como a população enxerga o jornalismo na cidade, a reportagem realizou uma pesquisa com moradores do local. Confira:

Opinião de Santa Cruzenses sobre o jornalismo local. Foto: Giovana Dal Posso Pegorer

Apesar da grande e rica história do jornalismo santa-cruzense, o futuro dos veículos locais ainda é muito incerto. A chegada das mídias sociais transformou o jornalismo, e no interior não poderia ser diferente. 

 Com a falta de profissionais e investimento, em sua maioria  direcionados para as grandes capitais, a escassez que acompanha as produções jornalísticas de Santa Cruz do Rio Pardo e outras cidades interioranas é prejudicial para a reestruturação da democracia e acesso à informação correta desses locais, tanto por seus moradores quanto por quem busca se inteirar de cidades emergentes.

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