Diversidade busca espaço em esporte dado como masculino e heteronormativo

Gabriel Saez e Giovana Leal

Imagem preto e branca da torcida uniformizada do cambuci composta por homens, mulheres e crianças vestidas de roupas típicas dos anos 30
Desde o início do século XX, mulheres buscam por espaço no futebol nas arquibancadas e nos campos (Imagem: Reprodução/Acervo Memorial da Portuguesa de Desportos)

A bola está na marca do pênalti, o atacante dá três passos largos para trás, o goleiro pula de um lado para o outro e as mulheres nas arquibancadas torcem as luvas encharcadas de suor, tensas pelo gol que decide a partida. A cena é do século XX e deu origem a palavra torcedor.

Se você é ‘torcedor roxo’ de qualquer time de futebol, pode agradecer às mulheres pelo termo que é usado arduamente no esporte. O hábito de torcer as luvas que seguravam durante os jogos foi parar na na boca do povo após jornalistas captarem o momento.

Ironicamente, são as mulheres que sofrem com a exclusão e driblam desafios para participar do universo futebolístico, seja nos campos ou nas arquibancadas. Mesmo representando 44% dos brasileiros que vibram pelo futebol, de acordo com o estudo do Kantar Ibope (2022), elas já foram proibidas de assistir às partidas desacompanhadas de seus maridos. Nos campos, não é diferente, até hoje a modalidade feminina do esporte não tem visibilidade e alcance merecidos.

A exclusão não acontece apenas com as mulheres. Outros grupos sociais também não têm espaço no futebol dado como masculino e heteronormativo. É o caso dos atletas e torcedores LGBTQIAPN+, que são forçados a criar suas próprias comunidades dentro do esporte. 

Atualmente, existem 24 times formados por homens homossexuais que fazem parte da LiGay Nacional de Futebol e, no Brasil, o número passa de 90 equipes, segundo o diretor da liga, Bruno Carvalho. Já nas arquibancadas, são 33 torcidas LGBTQIAPN+ no país, de acordo com levantamento do portal O Contra-Ataque.

Diversidade em campo: “não estamos aqui só para dar close

Até 2022, não havia nenhum atleta homossexual publicamente assumido atuando no futebol masculino brasileiro, de acordo com o levantamento Diversidade & Inclusão no esporte, da Nike e Nix. A mesma pesquisa ainda aponta que 89% dos entrevistados acreditam que há muito preconceito contra atletas LGBTQIAPN+ nesse esporte.

O clube Alligaytors, do Rio de Janeiro, nasceu em 2017 exatamente com esse intuito: criar um ambiente acolhedor para atletas que não se encaixam no molde heteronormativo. Mas para o presidente do clube, Bruno Carvalho, além de possibilitar a prática do futebol recreativo, hoje, a gestão aposta no time como um conjunto de atletas “com muito potencial competitivo”. “Antigamente, a gente pensava somente na inclusão, mas isso começou a incomodar alguns jogadores porque eles iam para campo sem chance de se classificar”, explica o presidente.

Além do desejo dos jogadores de levar o time para outro nível, a competitividade e seriedade dos outros clubes gays começaram a exigir um novo posicionamento. “Hoje, o nível de competitividade e qualidade da Ligay é muito maior. No primeiro ano da Liga, tinham oito times no nível nacional, hoje, são 90”, pontua Bruno.

“Não é porque somos gays que não podemos competir. É o que eu falo: orientação sexual não define a qualidade técnica de ninguém”

Bruno Carvalho

O presidente do Alligaytors compartilha que, muitas vezes, o time LGBTQIAPN+ não é levado a sério, e cabe a ele e aos jogadores mostrarem seu valor em campo. 

“Quando a gente compara com as outras modalidades, o futebol é muito mais preconceituoso. Já passamos por uma situação após uma partida contra um time de héteros que ouvimos: ‘Perdemos para um time de viadinhos’”, relembra Bruno.

Mancha Verde faz protesto homofóbico contra contratação do meio campista Richarlyson (Imagem: Reprodução/Fernando Dantas/Gazeta Press)

Mas, para ele, esse é somente um lembrete da importância de resistir e se fazer presente: “É importante mudarmos esse pensamento das pessoas, tirar essa imagem de que estamos jogando só para dar close”, ressalta. 

Diversidade nas arquibancadas: “não somos mais minoria”

Por muitos anos, as arquibancadas dos estádios de futebol foram sinônimo de machismo, racismo e homofobia. As próprias torcidas organizadas criaram um ambiente onde xingamentos homofóbicos eram naturalizados e até mesmo incorporados nos cantos contra oponentes e árbitros.

Torcidas LGBTQIAPN+ lutam contra gritos e cantos homofóbicos em estádios (Vídeo: Reprodução/Youtube O Tempo)

Até hoje, esse ambiente — por vezes hostil — afasta a pluralidade dos campos. Apenas 22,5% da comunidade LGBTQIAPN+ frequentam eventos esportivos presencialmente, apesar de 59% dela torcer por pelo menos uma modalidade esportiva, de acordo com o estudo da Nike e Nix Diversidade de 2022.

Dentro de uma maré de ‘ismos’ e ‘fobias’, a comunidade LGBTQIAPN+ encontrou uma forma de colorir as arquibancadas criando seus próprios coletivos e torcidas.

Tainá Sena, torcedora e diretora da LGBTricolor, torcida do Bahia, diz que outras organizadas levantam pautas importantes, mas falta representatividade. Apesar da relutância e “olhares tortos”, hoje, o coletivo homossexual tem mais de 500 membros e se tornou “uma família gigantesca”.

“Não somos mais minoria”

Tainá Sena

Tainá conta que, desde que a LGBTricolor começou a marcar presença nos estádios, as demais torcidas do Bahia cortaram palavras LGBTfóbicas dos cantos. “Muita gente acha que futebol não é lugar de política e luta, mas a gente combate isso ao máximo”, diz.

No Estado de São Paulo, a Porcoíris também é um ponto de força dessa luta. Letícia Pigari é membro do coletivo LGBTQIAPN+ do Palmeiras e diz que opressões ainda existem, “mas, hoje, essa luta não dá mais medo, ela é motivo de orgulho”.

A torcedora ainda ressalta a importância do diálogo com os times no combate à homofobia no ambiente futebolístico. “A ideia é que o clube entenda o que é realmente ser inclusivo”, diz Letícia.

3 momentos que a torcida fez a diferença

  • LGBTricolor – Pessoas trans no estádio

Em fevereiro deste ano, o Bahia e a torcida LGBTricolor levaram pessoas transexuais para assistir a uma partida de futebol no estádio pela primeira vez. O grupo acompanhou o jogo contra o Ferroviário, pela Copa do Nordeste.

A ação inédita foi realizada pelo dia da visibilidade trans, comemorado em 29 de janeiro. O objetivo da iniciativa era fortalecer a presença LGBTQIAPN+ nos estádios, segundo os organizadores. “Foi lindo ver pessoas que nunca pisaram no estádio e torcem para o Bahia com muito fervor”, diz a diretora da LBGBTricolor, Tainá Sena.

A ação também contou com uma edição especial da camisa da LGBTricolor nas cores da bandeira trans – branco, azul e rosa claros. O uniforme foi, inclusive, lançado pela torcida organizada, sendo a primeira camiseta relacionada à representatividade trans no futebol brasileiro.

  • Corinthians – Respeita As Minas

O slogan “Respeita as Minas” surgiu em debates sobre os direitos das mulheres na sociedade e foi adotado pelo Corinthians em 2018 a fim de nomear uma campanha do Dia Internacional da Mulher. 

O projeto ofereceu entrada gratuita para as torcedoras no dia 8 de março e meia entrada nos demais jogos do mês. 

A frase foi abraçada por todo o clube e a hashtag #RespeitaAsMinas é estampada em camisetas até hoje.

  • Palmeiras – Do Palmeiras faremos Palmares

A torcida organizada do Palmeiras, Porcomunas, realizou o evento “Do Palmeiras faremos Palmares” em novembro de 2021, em homenagem ao Dia da Consciência Negra do Brasil. 

O ato levantou o debate sobre questões raciais e futebol popular. Além disso, contou com a presença de ativistas, integrantes de movimentos populares e jornalistas, todos palmeirenses que “pensam um Palmeiras que se pinte de todas as cores”, de acordo com o texto de divulgação.

O nome do evento é uma reinterpretação dos versos do poeta José Carlos Limeira em referência à experiência do Quilombo dos Palmares: “Por menos que conte a história, não te esqueço, meu povo. Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo”.

Para além dos estádios, fazer parte do esporte é pertencer a uma comunidade

Bandeira LGBTQIAPN+ em primeiro plano, com estádio de futebol ofuscado ao fundo
Pessoas LGBTQIAPN+ buscam lugar seguro para torcer e jogar futebol (Imagem: Reprodução)

Se tem algo que a comunidade LGBTQIAPN+ é conhecida, é pelo acolhimento e sentimento de pertencimento. Nos campos cariocas em que o Alligaytors se formou, não é diferente. “Acolhemos o atleta, conversamos com ele, disponibilizamos acompanhamento com psicólogos. Também pensamos muito sobre o fora das quadras”, pontua o presidente do clube, Bruno Carvalho. 

O time tem muitos atletas jovens e molda não só bons jogadores, como também bons seres humanos. “Tem um atleta que chegou no time com 16 anos. Ele não era assumido, tinha medo, a família não sabia. Hoje, ele tem 21 anos, está no quartel, casado e sua família o aceitou. Se eu não tivesse o acolhido, será que ele teria percorrido esse caminho?”, reflete Bruno sobre um de seus jogadores. 

Nas arquibancadas, o sentimento de família, como descreve a diretora da LGBTricolor, Tainá Sena, também é presente. Os torcedores homossexuais relatam que a ida aos estádios acompanhada de outras pessoas do grupo torna tudo mais tranquilo e divertido.

Além disso, em casos de LGBTfobia, são essas torcidas que apoiam as vítimas, dando direcionamento jurídico e legal, facilitando o acesso aos seus direitos.

A questão que permanece é a falta de apoio e adesão da luta, seja pela sociedade em geral ou pelos clubes. Quando o assunto é futebol, os problemas e dinâmicas sociais são refletidos nos espaços compostos por jogadores, torcidas e campos, mas não são criados ali.

Nos estádios ou nas ruas, os aliados à equidade são necessários para que as vozes de qualquer movimento se ecoem.

Episódio novo no ar: a origem do futebol e o racismo em pauta!

No último episódio do Papo de Campo, viajamos no tempo e investigamos como as origens do futebol no Brasil se relacionam com o racismo visto em campo. O convidado da vez foi Emerson Prata, assistente de Formação e Conteúdo no Núcleo Educativo do Museu do Futebol, em São Paulo.

Aperte o play e confira!

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