O movimento marca a história da contracultura através de letras icônicas, estilos subversivos e resistência cultural.
Camila Martins do Espírito Santo
Mais do que um movimento de contracultura que rejeita a normatividade desde a década de 1970, a raiz underground do punk possui inúmeras vertentes que se encontram e conquistam adeptos nos quatro cantos do mundo.
Engana-se quem pensa que o hardcore está morto. Os rostos da cena se renovam, descobrem novos estilos. No entanto, suas características principais se mantêm as mesmas. A quantidade de cabelos coloridos e espetados a cada esquina pode ter diminuído, mas lugares como o Madame Satã, na capital paulista, continuam cheios de pessoas com sede de romper com o convencional. Os stage divings, os moshs e os headbangings ainda coreografam um movimento cheio de personalidade, marcado por uma trilha sonora acelerada, de ritmo dois por dois, vozes gritadas e guitarras distorcidas.
Originado em Londres, capital da Inglaterra, em parcelas menos favorecidas da sociedade, o movimento punk criticava o sistema capitalista e pregava a anarquia política. A revolta era o sentimento unificador de todas as pessoas que faziam parte de um grupo que liderava diversas lutas, através da política, da moda e da música. Um movimento visual, que fazia com que seus aderentes jamais passassem despercebidos.

Ao longo dos anos, o movimento punk se difundiu pelo mundo, chegando no Brasil ao final da década de 1970, juntamente com o “milagre econômico”, as censuras e a repressão da Ditadura Militar. As más condições de trabalho, a alta taxa de desemprego e a falta de liberdade fizeram com que o movimento se tornasse um símbolo de resistência e força, quando comparada a outros países.
A forma de expressão é um elemento que gera uma forte identificação entre as pessoas que fazem parte do movimento punk. Na música, por exemplo, os diversos estilos entrelaçados na cultura underground promovem uma conexão profunda do público com as letras, fazendo com que a veia artística do underground seja ainda mais notável no contexto musical.
O hardcore como forma de protesto, trabalho e transformação
Em todas as vertentes do underground, a música sempre foi um dos principais meios de manifestação do movimento. Os protestos são traduzidos em versos e mostram que a cena ainda está diretamente ligada à questões políticas, mesmo após a redemocratização do país. Isso não seria diferente com o punk, inclusive em sua segunda onda: o hardcore.
De Sex Pistols e The Clash a Planet Hemp e Ratos de Porão, seja no rock ou no hip-hop, o hardcore ainda está carregado de protestos, que gritam em alto e bom som suas ideologias para a sociedade. Há quem diga que a música é capaz de dizer aquilo que muitos pensam e não conseguem expressar, no entanto, para a cultura hardcore, é ela quem abre os olhos de seus adeptos que, a partir das letras, passam a se interessar pelas movimentações políticas e organizar formas de exercer a democracia, como em protestos e manifestações.
Jimmy Carreiro Lima (27), fotógrafo brasiliense, sempre esteve ligado à cultura underground, principalmente no hardcore punk e suas vertentes políticas. Ele, que hoje trabalha para bandas da cena, aponta que nos últimos dez anos em que vivenciou o movimento, percebeu a importância de se discutir política através da música. “A gente vivia na base do ‘Política, futebol e religião’ não se discutem, mas conforme a gente vai crescendo a gente vê que política e religião têm que ser discutidas e ter bandas que falam sobre isso é muito importante”, reflete.
Foi no ensino público que Jimmy descobriu diversas bandas que faziam sentido à sua realidade e davam abertura para diversos questionamentos sociais. Em 2013, estava à frente de manifestações como a “Marcha do Vinagre”, que reuniu cerca de 10 mil pessoas em frente ao Congresso Nacional para protestar contra os gastos públicos com a Copa do Mundo e o preço das passagens dos transportes públicos em diversas regiões do país. O brasiliense conta que grande parte da movimentação foi divulgada através do Tumblr, rede social muito utilizada por adolescentes e jovens adultos na época.
O jovem de Brasília fez do hardcore um dos pilares do seu trabalho nos dias de hoje. Como fotógrafo profissional, realiza a cobertura de shows de diversas bandas da cena hardcore e emocore. Atualmente, é o fotógrafo oficial da banda Fresno, uma das precursoras do hardcore melódico no país. Mas, para registrar grandes artistas, foi necessário aprender muito com a raiz do underground.
“Com Pense [banda brasileira de hardcore], eu trabalhava em cima do palco com uma lente grande angular e, de lá do palco, tinha gente pulando em cima de mim. Ali era loucura, era bizarro, mas eu me divertia bastante”, relembra Jimmy. O profissional ressalta que fotografar shows de hardcore sempre foi sua paixão e que muitas vezes sente falta de estar mais próximo do underground, agora que já atingiu o mainstream.
Assim como em qualquer expressão de contracultura, o preconceito também domina o meio underground em todas as suas vertentes. Quem tira seu sustento através desta cultura, como no caso de Jimmy, pode se deparar com um cenário ainda mais complexo. Para o fotógrafo, trabalhar com arte sempre será algo julgado por terceiros que, a princípio, apostam no fracasso. No entanto, o descrédito não o abalou. Pelo contrário, o fez enxergar no hardcore um lugar em que pudesse se desenvolver como profissional e, acima de tudo, expressar seus sentimentos.

Em São Paulo, outro pólo do movimento underground e hardcore punk no Brasil, encontra-se Bruno Olgas (26), radialista que teve seus primeiros contatos com o hardcore ainda criança, em meados de 2005. Desde que começou a escutar CPM 22 por influência do pai, buscou entender mais sobre o assunto. Por volta dos 17 anos se aprofundou em bandas mais desconhecidas, álbuns antigos de punk e a identificação só aumentou.
Quando se trata do punk, o jovem ressalta que aprecia a maneira como esse estilo musical é capaz de transmitir ideias de forma impactante, exercendo um grande poder de mobilização na sociedade e fazendo com que seja possível se sentir pertencente a uma causa. Para ele, o punk representa tanto uma expressão artística quanto um estilo de vida que desperta uma conexão profunda nas pessoas, algo que o impressiona.

A história de Bruno com o hardcore chega a ser intensa a ponto de ser tatuada na pele. O radialista tatuou o símbolo do álbum “Liberta”, da banda Rancore, em seu braço. “O Rancore veio em um momento em que eu ‘quebrei mentalmente’, eu tive um problema muito sério de depressão e ansiedade e o álbum inteiro falava comigo no momento em que eu mais precisava”, relembra.
Para ele, esta tatuagem resume o que as músicas e o hardcore como um todo despertam nas pessoas, além de gerar ainda mais envolvimento com quem pertence ao movimento. Afinal, quando outros fãs de Rancore reparam na tatuagem, já há motivo suficiente para puxar conversa e iniciar diversas amizades.
O emocore no Brasil: da melancolia do amor, à alegria cancelada
Originada do hardcore e do post-hardcore, uma outra vertente do underground surge em meados dos anos 1980. Com um caráter mais emotivo, melancólico e melódico, o emotional hardcore circulava de forma tímida na música, apenas no cenário underground. A maior parte das músicas consistia em temáticas voltadas para desilusões amorosas e descontentamento com a vida e, apesar de não ser bem recebida a princípio, foi conquistando mais adeptos até se popularizar no final dos anos 1990.
Ao agregar mais bandas à cena e cair no mainstream, a cena mudou por completo. O emocore, a princípio, consistia apenas em uma derivação musical do hardcore. Depois de sua popularização, o movimento se tornou também estético e, ao cair no mainstream, foi estereotipado. A partir deste momento, os adeptos à cultura tiveram que lidar com críticas e comentários maldosos voltados à sexualidade masculina, carregados de machismo.
Tais características fizeram com que ser considerado emo fosse algo pejorativo, inclusive por outras vertentes do rock. Por este motivo, diversas bandas da cena demoraram muitos anos para se assumir como emo. Apesar das dificuldades, o sentimento de identificação dos adeptos ao movimento foi forte o suficiente para que as bandas chegassem às principais paradas de sucesso e conquistassem ainda mais pessoas.
Foi exatamente assim que começou a história de Sofia Capoani (21) no movimento emo. Seu primeiro contato com o hardcore e o emocore foi através do primo mais velho, que também era adepto à cultura. Os clipes da antiga emissora MTV e as revistas com pautas sobre o assunto também fizeram com que ela nutrisse uma paixão pelo emo e buscasse entender mais sobre as raízes do movimento, apesar de ainda não ter coragem de expor seu engajamento, justamente por causa dos preconceitos envolvendo a cultura.
“As pessoas super julgavam […] e na época, infelizmente, eu ligava muito para o que os outros pensavam. Então, na minha cabeça eu tinha que escutar o que os meus amigos escutavam, tinha que gostar dos artistas que todo mundo gostava e nenhum dos meus amigos era emo”, relembra a estudante de Relações Públicas. Esses dilemas foram carregados por Sofia até meados de 2019, quando decidiu se envolver mais com o movimento e adotá-lo como parte de sua identidade.
Os caminhos que levaram João Victor Gomes (23) até o emocore também são parecidos. Por influência do pai, com o punk, e do irmão, com o hardcore melódico, o jovem estudante de Relações Públicas foi, naturalmente, adotando o estilo de vida no dia a dia, até chegar aos 17 anos, quando começou a levantar a bandeira do movimento.
Muito mais do que um gosto musical, o emocore se mostra cada vez mais semelhante às outras vertentes da cultura underground, funcionando como um espaço de expressão de ideais muitas vezes reprimidos pela sociedade. Tanto para Sofia, como para João, o movimento emo funciona como um ato de resistência, um lugar onde é permitido se expressar da maneira mais autêntica possível, sem ter vergonha de ser você mesmo.

“Essa ‘fita’ de você levantar a bandeira, bater no peito e falar: ‘eu sou emo!’ é quase uma luta, porque [o movimento] é meio cíclico. Sempre vão ter fases em que alguma coisa vai ser mal vista. O emocore começou muito forte e por algum motivo ser emo virou algo pejorativo […] e quando a gente levanta essa bandeira, a gente influencia outras pessoas a reconhecerem isso também”, reflete João Victor.
E engana-se quem pensa que o emo se mantém como ele surgiu. Mais de 20 anos após sua chegada ao Brasil, bandas nacionais, como a Fresno, acompanharam seus fãs em diversas fases da vida, cantando sobre sentimentos que foram desde a desilusão do amor adolescente até o descontentamento com a situação política, social e econômica do país.
É possível perceber este tipo de transformação ao analisar diversos álbuns da banda, como “Quarto dos Livros” (2003) e “Redenção” (2008) e “Sua alegria foi cancelada” (2019) e “Vou ter que me virar” (2021). Nos álbuns da década passada, observamos um eu lírico muito mais apegado a questões amorosas, a melancolia romântica que domina os corações de todo adolescente. Já nos últimos álbuns, observa-se um posicionamento político marcado, com e a incorporação de um ideário antifascista muito característico de outras vertentes do hardcore, agora presente também no emo.
Assim como o punk e o hardcore raiz, o movimento emo passou por altos e baixos em questão de popularidade, vivendo seus auges na década de 2000 e, posteriormente em 2010, com o lançamento de bandas como Restart e Cine. O retorno de bandas como NX Zero, além dos grupos musicais que ainda se mantêm vivos, como os veteranos do hardcore melódico CPM 22, Fresno, Strike e Hevo84 (que voltou a se apresentar em 2022), a cena emocore parece estar mais viva do que nunca.
Jimmy Carreiro, que acompanha a Fresno de perto, aponta que uma das mudanças observadas que ajuda a fortalecer o movimento é o fato de que os adolescentes que acompanhavam estes artistas no passado, agora são adultos que conseguem frequentar os shows sem depender financeiramente dos seus pais ou responsáveis. Com mais pessoas frequentando os eventos, as bandas começam a voltar para as paradas, fortalecendo o movimento.
A cada década, uma nova roupagem. Mas uma característica permanece: o pertencimento. Para muitos, ser adepto ao emo é sinônimo de lar, de encontro e de identidade.

O rock underground longe da capital
Longe das capitais, como São Paulo e Brasília, onde o punk e o hardcore são consolidados, a cena aparece de forma tímida, mantendo a característica de sobrevivência no meio underground. Há menos lugares disponíveis para a expressão da identidade deste grupo, o financiamento é reduzido e ainda existem diversos preconceitos a serem combatidos.
Enquanto a cidade de São Paulo possui casas noturnas características do movimento underground, como o Madame Satã e o antigo Hangar 110, que abriu espaço para inúmeras bandas de sucesso, o interior ainda possui poucas oportunidades de expressão de contracultura.
Em Bauru, interior de São Paulo, os fãs de punk, hardcore e as demais vertentes do movimento underground costumam se encontrar no Jack Music Pub, uma casa noturna inspirada nos pubs ingleses que já recebeu diversos artistas da cena, como CPM 22, Dead Fish e Forfun. Hoje em dia, a maior parte das apresentações consiste em covers destas mesmas bandas.
Antes do Jack, a Casa Orates costumava abrir muito espaço para a cena. Ainda que o espaço não contasse com uma grande infraestrutura, Orates era um dos poucos ambientes que respiravam o underground em Bauru. Infelizmente, a casa noturna encerrou suas atividades.
Quem deseja encontrar estes espaços, precisa ignorar opiniões de terceiros e ir ao encontro de quem pensa da mesma forma. Para Sofia e João Victor, que saíram de outras cidades do interior para morar em Bauru, garimpar ambientes de lazer voltados ao punk é uma atividade comum.
“Os poucos [lugares] que têm aqui [em Bauru] eu gosto bastante de frequentar. Dá um ‘quentinho’ no coração. Eu penso: ‘é minha turma, eles me entendem!’. É raro isso acontecer, mas é muito massa quando acontece”, comenta Sofia.

O emo não está morto (nem mesmo no interior)!
Apesar de tímido, o movimento conta com o surgimento de novas bandas nos interiores do Brasil. Um exemplo é a EmoTune, banda de hardcore melódico do interior paulista, que iniciou suas atividades no ano passado e hoje já conta com algumas apresentações relevantes para a cena. Duas delas, aconteceram nos últimos dias 23 e 24 de junho, em Araraquara e São Carlos, onde cantaram com Pe Lanza, ex-integrante do Restart e representante da segunda geração do emocore.
Formado por Dueiny Godoi, Thiago Santos, Leonardo Pessutti e Júlio Almeida, o grupo traz consigo as influências e paixões do emo e do rock alternativo, cantando covers das principais bandas da cena.
Os quatro se uniram com a proposta de reviver o movimento emo de 2008, época em que o estilo estava em alta, e começaram a trilhar seu caminho na cena underground. Mesmo enfrentando desafios, como a falta de espaço para o hardcore e emocore no interior paulista, a aceitação por parte do público é o que os faz continuar com o projeto.
Apesar dos preconceitos, especialmente por parte dos contratantes, a banda acredita no potencial do movimento emo e em sua atual ascensão. Eles reconhecem a existência de um nicho específico de fãs e esperam que, com o tempo, mais espaços sejam abertos para quebrar estereótipos e preconceitos, beneficiando não apenas as bandas, mas também as casas de shows e o público em geral.
Para a EmoTune, o emocore significa muito mais do que um rótulo ou um estilo musical. É uma essência presente em cada um dos membros da banda, que encontraram neste movimento uma forma de expressão e conexão com o público. Mesmo sendo ecléticos em seus gostos musicais individuais, eles valorizam a diversidade sonora e visual que o emocore proporciona.

Olhando para o futuro, a banda enxerga oportunidades de crescimento e amadurecimento. Além de continuar conquistando espaços por meio de apresentações ao vivo, eles planejam lançar músicas autorais, explorando a cena atual do emo no Brasil.
Mesmo distante da capital e enfrentando desafios, os adeptos ao punk, ao harcore e ao emocore seguem com o propósito de reviver o movimento underground em todas as suas vertentes, seja encontrando seu espaço na cena e contribuindo para o fortalecimento do movimento além das grandes metrópoles, ou se expressando através das inúmeras formas possíveis, como a moda, a música e o pensamento disruptivo.
Uma coisa é fato: o punk nunca esteve morto, ainda que quisessem “ver o ‘oco'” do movimento inúmeras vezes.










