O uso da linguagem neutra, criada para diminuir as marcas de gênero na língua portuguesa, ainda enfrenta resistências

Por Isabela Giro

Em meio às celebrações do orgulho LGBTQIAP+ durante junho, foi possível perceber uma maior circulação de publicidade e propaganda com essa temática no mês. Dessa maneira, devido ao maior alcance midiático desse grupo nos últimos anos, o uso de uma modalidade emergente da língua própria dessa comunidade tem provocado crescente polêmica: a linguagem neutra.

Esta forma de escrita é uma tentativa de diminuir as marcas de gênero na língua portuguesa, com a finalidade de incluir pessoas que não se identificam dentro das normas binárias homem/mulher. Além disso, ela busca driblar concepções sexistas fundidas à língua.

“Se pensarmos na língua com pressuposta pelos discursos de determinado tempo e espaço, o termo menin/es/ seria entendido como indicação de que é necessário debater o sexismo na nossa sociedade e como esse comportamento se reflete nas questões de linguagem”, afirma a doutora na área da educação em linguagem Rita de Cássia Antonia Nespoli de Ramos.


Rita de Cássia Antonia Nespoli de Ramos é doutora e Mestra em Educação pela Universidade de São Paulo (USP)

O intuito do movimento é incluir um número maior de pessoas, porém há quem aponte que a exclusão aumente com essa nova linguagem. As grafias “todxs” e “tod@s”, por exemplo, são sinalizadas como um obstáculo para pessoas cegas e com dislexia, pois dificultam o trabalho de softwares de leitura. Entretanto, esse não é um caso particular da linguagem neutra, pois abreviações do meio cibernético como “vc” ou “hj” também não são reconhecidas por esses programas.

Assim, a alternativa atual indicada consiste em substituir os finais “o” e “a” pela vogal “e”, transformando “todos” em “todes”. No caso de pronomes, são propostas as formas “elu/delu” ou “ile/dile”.

Outra questão levantada por críticos dessa linguagem é a exclusão de pessoas de baixa escolaridade, cujo conhecimento limitado do português formal impediria a compreensão dessa modalidade. Discursos desse tipo, contudo, tratam a linguagem neutra como uma causa da exclusão, e não como um sintoma de uma sociedade assolada pelo abismo de disparidade social.

27/06/2023 – Brasília – Orgulho LGBTQIA+: Palácio do Itamaraty é iluminado com cores da bandeira que representa diversidade. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil. Desde janeiro, o Governo Federal utiliza o pronome “todes” em cerimônias oficiais.

“Pelo que entendo, a língua é um elemento vivo e sofre transformações”, afirma a professora Rita de Cássia. “Se pensarmos na língua não apenas como código sistematizado e estruturado, mas em um sistema ideológico permeado pelos discursos, acredito que se possa debater essas modificações como um passo para a inclusão, pois as construções sociais que marcam a visão pejorativa de certos grupos refletem-se no uso da língua”, completa.

Para a doutora e professora, as discussões sobre o assunto ainda são muito recentes e necessitam maior aprofundamento em diferentes áreas dos estudos da língua. Quanto ao estabelecimento efetivo dessa modalidade no português, ela diz que isso dependerá do tempo e do desenvolvimento da discussão no plano político-social, visto que a língua não se resume apenas à gramática escrita.

“Note-se que há muito tempo, há debates sobre variações linguísticas e ainda há palavras, termos, expressões e prosódias associados a grupos menos favorecidos economicamente e entendidos como “errados”, em qualquer situação de comunicação”, afirma Rita. Em seguida, ela exemplifica lembrando da controvérsia causada pela palavra “presidenta”, que só ocorreu após a eleição de Dilma em 2014.

Atualmente, grande parte da resistência à linguagem neutra surge no meio de partidos políticos de direita conservadora, comumente armados de um discurso religioso.

Apesar de, em fevereiro deste ano, o STF ter derrubado leis que proíbam o uso de linguagem neutra nas escolas, projetos desse tipo continuam a avançar em estados e municípios. Em 24 de abril deste ano, por exemplo, foi aprovado um projeto de lei em Belo Horizonte do ex-vereador Nicolas Ferreira, que veta a linguagem nas escolas. Aquele mesmo político que cometeu transfobia contra a deputada Duda Salabert.

E o conservadorismo não se limita à ala política: nas salas de aula a linguagem neutra também enfrenta empecilhos.

Para Rita, em sua experiência, “o assunto causa muito mais polêmicas que outros como: aborto, sexualidade, questões de gênero e de identidade”.

“Muitos alunos apresentam argumentos, como: ‘vão querer mudar a língua na força’, ‘já existe o masculino que é neutro, que tem explicação no latim’, ‘não tem inclusão nenhuma’. Quando questionados quem seriam esse ‘eles’ implícito na fala, os estudantes afirmam que se referem a grupos de LGBTQIAP+ que inventaram, na visão daqueles descontentes com o debate ou com algum exercício de interpretação de texto, um novo jeito de serem incluídos. Outro grupo grande de estudantes também, em algumas classes, recusam-se a falar sobre o assunto, afirmando ser uma verdade ‘bobagem’ esse tema.”

Ela completa: “No entanto, há uma parcela menor que propõe outros debates, pois entendem que a análise os usos da língua podem contribuir para se pensar os preconceitos que permeiam a sociedade, principalmente, os que se revelam nessa alta rejeição para se pensar o assunto”.

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