35 anos depois da ‘Carta de Bauru’, saiba como está a luta antimanicomial.

Por Vinícius Lozano

Há 35 anos, em Bauru, ocorreu o II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, onde foi firmado o denominado “Movimento Nacional de Luta Antimanicomial”. Desde então, pesquisadores e profissionais como Gabriel Arfeli, graduado em psicologia pela UNESP Bauru e mestre pelo programa de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da UNESP Botucatu e premiado pelo CRP-SP no Prêmio Marcus Vinícius de Psicologia e Direitos Humanos, aderem à causa, que tem como objetivo defender o direito daqueles encarcerados por instituições que prometem auxiliar no tratamento de doenças mentais. A luta principal vem do fato de que estes “tratamentos” não visam amparar o indivíduo, mas sim, excluí-lo da sociedade.

“O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida”.

Este é o quarto parágrafo do Manifesto de Bauru, carta criada em 1987 com o objetivo de firmar o combate contra os manicômios. O primeiro ponto para entender o combate é entender seu alvo. “Manicômio não é prédio, não é instituição. É uma lógica. Então a luta antimanicomial é uma luta contra essa lógica manicomial”, diz Gabriel Arfeli, integrante da luta.

Capa do relatório do II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental. (Reprodução: Google)

Sanatório, hospício, manicômio. Todos são termos usados para se referir a “instituições declaradamente de tratamento médico terapêutico, mas que são essencialmente [instituições] político-econômicas de punição e exclusão”, diz Gabriel. Com o objetivo de controlar os classificados como “loucos” e “insanos”, esses locais e seus meios de tratamento foram criados para auxiliar na melhora desses indivíduos, fazendo com que eles retornem para a sociedade (e principalmente para o mercado de trabalho), sem “problemas” e agindo da forma esperada, dentro da “norma”.

“Quem se adequa a norma é o normal, quem não se adequa é anormal. Então cria-se uma ‘ciência’ para identificar o anormal, que precisa ser tratado e normatizado, quando possível. Tem alguns que podem ser normatizados, tem alguns que não. Então, pela lógica, é só confinar mesmo”, complementa.

Gabriel também reforça a seletividade que essas instituições sempre tiveram, onde a maior parcela confinada ali faz parte de uma classe social mais baixa, geralmente negra e periférica e que não está inserida no mercado de trabalho.

“No Brasil pós-escravatura, e até hoje, [esses locais] tem uma função social de confinamento e limpeza da cidade referente a pessoas negras e pobres. Não à toa há uma seletividade de confinamento nessas instituições, seja a penitenciária, seja um manicômio, referente a uma questão étnico-racial, então é uma luta antirracista também”, explica.

“Os Hospitais de Custódia surgem no Brasil depois de supostos casos sensacionalistas, que não existem nenhum registro de terem acontecido, de crimes de pessoas negras recém-libertas contra mulheres da Elite do Rio de Janeiro. Isso legitima uma suposta necessidade de criação de uma nova instituição manicomial destinada especificamente para ‘loucos criminosos’ que até hoje a gente [que faz parte da luta] chama de ‘pior do pior’. Por que junta o pior do manicômio com o pior da prisão. E isso se transforma em uma instituição extremamente violenta”, explica.

Diante desse histórico de preconceito e de uma promessa de ajuda e tratamento, mascarando o verdadeiro objetivo de violentar certos grupos, é criada essa lógica de controle inserida em várias instituições e meios sociais. Porém, sempre existem aqueles que combatem ideias que vão contra os direitos humanos básicos. Criada em meados de 1970, o movimento se iniciou, pressionando mudanças na forma como esses direitos eram aplicados em ambientes de internação e, a partir de 1987, é instituído o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, comemorado em 18 de maio, por todo o país.

Mudança de perspectiva

Em 6 de abril de 2001 foi criada a Lei Nº 10.216 (conhecida também como Lei Antimanicomial), que tem como objetivo “a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. A partir desse momento, a forma como são criadas políticas públicas para auxiliar esses sujeitos muda. Pensando na luta contra uma lógica de tratamento, tem-se como objetivo acabar com essa lógica. Começa então a ser criada uma nova forma de abordagem.

“A lógica de tratamento agora se chama psicossocial, não mais biomédica. Isso significa descentralizar o tratamento de propostas focadas no sintoma, centralizando o sujeito. Com esse modelo psicossocial, primeiro conhecemos a pessoa para ver se os sintomas são um problema, porque muitas vezes não são. Então o foco do tratamento não vai ser esse. Pode ser, por exemplo, a solidão que essa pessoa passa por conta de ser vista como ‘louca’”, complementa o psicólogo.

E então, a partir da criação dessa lei e da mudança de perspectiva a respeito do indivíduo, surge uma outra instituição para mediar esse tratamento, chamado CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). “E nessa primeira década de 2001 até 2011 isso se fortalece muito a ponto de criar-se agora uma nova forma de organização, que é uma rede de atenção psicossocial. Envolvendo outros aparelhos de saúde mental para que esse sujeito possa circular e ser tratado de diversas formas, sempre focando na cidadania, no bem estar e na saúde”, complementa.

Mas como nem tudo são rosas, Gabriel comenta também que após 2011 essas políticas encontraram vários problemas por conta de vieses conservadores que atrapalham o desenvolvimento desses meios de tratamento, como diminuição de verba e inserção de outros tratamentos vinculados novamente à lógica manicomial, como o aumento de leitos para hospitais psiquiátricos.

CAPS-AD II, unidade com o objetivo de atender usuários de álcool e outras drogas, localizado em Bauru. (Reprodução: Google Maps)

Próximos passos

Em 15 de fevereiro de 2023, foi firmada a Resolução Nº 487 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Ministério da Saúde (MS), visando uma nova mudança de perspectiva e a retomada dessa luta de forma eficaz. Foi definido um prazo de seis meses para a interdição parcial de estabelecimentos, alas ou instituições de custódia e tratamento psiquiátrico, com proibição de novas internações, e doze meses para a interdição total e o fechamento dessas instituições.

Com uma luta importantíssima para nosso mundo contemporâneo, onde o respeito a todos e a liberdade são discutidos diariamente, cabe a população ter consciência de seus próximos e como existem grupos sendo punidos e violentados simplesmente por existirem e serem da forma que são. Levantar a bandeira, assim como os trabalhadores de Bauru fizeram em 87 nunca foi tão necessário, e seu lema nunca esteve tão atual. “Por uma sociedade sem manicômios!”.

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