O game é pioneiro da representatividade LGBTQIA+ no mundo dos jogos e exemplifica o quão importante é a retratação da comunidade na mídia

Por Raíra Tiengo

Vencedor de mais de 200 prêmios de Jogo do Ano, The Last of Us foi produzido originalmente para PlayStation 3 e lançado em 2013, com uma continuação para PS4 sete anos depois, em 2020.

O jogo conta uma história emocionante: em uma civilização completamente assolada, infectados por um vírus e sobreviventes veteranos estão à solta. Joel, o protagonista do primeiro jogo da saga, é contratado para tirar uma garota de 14 anos, Ellie, de uma zona de quarentena militar.

A partir disso, acompanhamos as dificuldades que a dupla enfrenta e, o que parece ser apenas um simples trabalho, não demora a se transformar em uma jornada longa e cruel, repleta de reviravoltas.

Joel e Ellie, dupla protagonista da saga ‘The Last of Us’, no início da jornada (Fonte: Playstation Blog)

No segundo jogo da saga, a história de Ellie é mais explorada e, desse modo, bem melhor aprofundada. É possível conhecer bem mais da protagonista e do seu passado, agora cinco anos mais velha do que era na obra anterior.

Diferente do que é no primeiro jogo, The Last of Us Part II não deixa apenas escondido nas entrelinhas para que os jogadores tirem as próprias conclusões acerca da sexualidade da protagonista. Nele, fica explícito que Ellie é lésbica e aborda relacionamentos anteriores e atuais da personagem.

Ellie foi a primeira protagonista feminina abertamente queer apresentada em um jogo de grande sucesso, levando em consideração que a obra foi lançada em uma época onde a comunidade LGBTQIA+ raramente era retratada ou sequer tinha uma relevância notória em franquias com tamanho alcance.

Com o lançamento do segundo jogo da franquia, o público conservador não deu descanso para a empresa desenvolvedora, Naughty Dog, e a obra enfrentou duras críticas por retratar um relacionamento homoafetivo de Ellie com Dina, além de, também, um personagem transgênero.

“Que eu me lembre, a discussão do primeiro jogo acerca da sexualidade da Ellie foi superficial, já que não focaram muito nisso”, comenta Mário Marcos Tiengo, 41, que teve a experiência de jogar o game na época do lançamento. “Nem se compara com o tamanho da discussão que foi no segundo jogo. Os comentários feitos pelos gamers reacionários chegava a dar raiva”, completou Mário.

Muitos dos comentários realizados alegavam que estavam tornando o jogo “excessivamente político”. Rótulos como “porcaria liberal” e “lacração” eram bastante usados.

Nas redes sociais, conservadores apelidaram o jogo de “The Lesbian of Us” e diziam que tudo isso era fruto de “ideologia de gênero”, termo utilizado pela extrema direita para qualquer coisa que se diferencia da heteronormatividade.

Entretanto, nesses 10 anos de lançamento de The Last of Us, é bastante perceptível que houve uma mudança. Mesmo que pequena, hoje em dia se tornou muito mais comum a presença de personagens que pertencem à comunidade em jogos.

Definitivamente, The Last of Us foi um dos pontapés iniciais para que isso se tornasse possível, como é visto em jogos lançados posteriormente, como Tell Me Why e Life is Strange 1 e 2.

Assim, ao observar a melhora na recepção de obras que abordam livremente o tema, levanta-se um ponto importante: a representação LGBTQIA+ na mídia é extremamente significativa não apenas para a comunidade, mas também para que pessoas de fora possam ter uma visão mais aberta e liberal a respeito do assunto.

Para a psicóloga Ana Carolina C. Christovam, “a representatividade pode ajudar na formação da personalidade das pessoas, gerar autoestima e empoderamento, bem como a confiança em si mesmo”. Ela deixa claro que, até mesmo do ponto de vista da Psicologia, a representação de minorias, seja qual for, tem um papel fundamental em seu processo de autoaceitação.

“Ao ver personagens e histórias que refletem suas experiências, elas [pessoas LGBTQIA+] podem se sentir validadas, compreendidas e aceitas”, diz Carol, reforçando que, para pessoas LGBTQIA+, a retratação de situações similares às que enfrentam podem ter um impacto bastante positivo. “Isso fortalece a autoestima, promove um senso de pertencimento e facilita o processo de autodescoberta e aceitação”, completa.

Além disso, não é novidade que a representação na mídia também pode ser feita de uma maneira bastante errônea, firmando desentendimentos comuns e aumentando preconceitos acerca da comunidade.

Com o uso de estereótipos exagerados e até mesmo a busca por alívio cômico, não são poucos os casos em que o desrespeito com pessoas LGBTQIA+ foi criticado pelo público, como ocorre nas primeiras temporadas da série Modern Family com Cam, um personagem homossexual carregado em esteriótipos.

“A representatividade na mídia também pode ser útil ao desafiar estereótipos prejudiciais e preconceitos arraigados em relação às pessoas LGBTQIA+”, reitera a doutora. “Ao mostrar uma variedade de personagens com vidas plenas e complexas, a mídia pode ajudar a combater a discriminação e promover a aceitação em toda a sociedade”.

Portanto, se realizada de forma correta, a representação queer na mídia é surpreendentemente útil, essencialmente para pessoas não assumidas, como afirma a psicóloga, que têm medo de serem marginalizadas ou rejeitadas.

Ellie e Dina em The Last of Us Part II (Fonte: Clube do Video Game)

E, por fim, a representação na mídia funciona como uma poderosa rede de apoio para a comunidade LGBTQIA+. Ao trazer visibilidade para a luta através de personagens, narrativas e histórias que refletem as experiências dessa minoria, a mídia pode oferecer um senso de pertencimento, validação e apoio emocional. “Isso ajuda a construir uma rede de apoio tangível e acessível para aqueles que buscam suporte e recursos dentro da comunidade”, afirma Carol.

A doutora ainda complementa dizendo que, ao se conectar com histórias que ressoam com as próprias vivências, desafios e lutas, o indivíduo LGBTQIA+ se sente mais compreendido e, principalmente, válido.

Obras como The Last of Us, que oferecem uma retratação autêntica e inclusiva, desempenham um papel vital na promoção do bem-estar emocional e fortalecimento da comunidade LGBTQIA+, além de informar o público geral e auxiliar a combater preconceitos e estereótipos prejudiciais. É necessário chegar em um ponto no entretenimento que isso não seja mais considerado algo ousado.

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