Por: Ana Luiza Moura e Manu Lima

Ativista do movimento negro e da luta antirracista, Juarez Tadeu de Paula Xavier é formado em jornalismo pela PUC- SP e tem mestrado e doutorado em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo. No mestrado, foi orientado pela professora Romilda Ribeiro e no Doutorado pelo professor Kabengele Munanga. É professor universitário desde 1998 e atualmente, é vice diretor da FAAC- Bauru.

Sobre suas origens, Juarez diz: “sou filho de um homem que passou parte dos anos 60 preso e foi assassinado em 1970, e de uma mulher muito corajosa, que foi trabalhadora agrícola, veio para São Paulo, foi operária têxtil e terminou a vida como empregada doméstica”.

Nesta entrevista exclusiva par o Jornal Contexto, Juarez Xavier fala sobre a representatividade preta na sociedade e sua influência no combate ao racismo.

Jornal Contexto: Qual é sua visão como Vice-diretor da FAAC em relação à representatividade preta?

Juarez Xavier: Não basta aumentar a representação na universidade, não basta você dar mais valor aos negros, se eles vão chegar na universidade e vão reproduzir a lógica de segregação da população negra. É o caso, por exemplo, do ex- presidente da Fundação Cultural Palmares. Os jovens precisam ir para a universidade para desmontar essa máquina, não para retroalimentar essa máquina. Então, não necessariamente, mais pessoas pretas em espaços supostamente de representatividade, implicará em um aumento maior dos direitos da população negra, porque se fosse assim, o racismo não seria estrutural. Ele é estrutural porque precisa ser desmontado, essa estrutura precisa ser desarticulada e reinventada.

Nós temos que passar por um processo de mudança na sociedade que efetivamente assegure a maior participação de homens, de mulheres, de gays e lésbicas, de trans, e pessoas pobres, e não na proporção da presença delas na sociedade. É mais do que representação, é participação efetiva nesse espaço. Aí sim, você começa a ver uma perspectiva de mudança. Portanto, um dos embates na universidade não é aumentar a representação, é mudar o episteme da universidade, dessa patriarcal, capitalista, e supremacista branca por uma efetivamente participativa, democrática e diversa.

Jornal Contexto: Você acha que a representatividade preta em filmes e séries contribui para a luta antirracista?

Juarez Xavier: Não necessariamente. A mídia, e os meios de comunicação, são fundados, e estruturados para replicarem o racismo. O primeiro jornal que surgiu no Brasil, em 1808, chamado Gazeta do Rio de Janeiro, foi criado para construir uma subjetividade racista. O âmbito que se tinha na época era o racismo científico. Até 1930, você tem essa ideia muito bem implantada, mas os jornais começaram a comprar uma outra lógica construída na academia, que a democracia racial. Então, você tem uma suposta democracia racial, que reduz o enfrentamento ao racismo. Há uma ação institucional nesse sentido. Isso só muda um pouco nos anos 70, quando a Unesco manda uma comissão de especialistas para estudar a relação racial no Brasil e vê que a democracia racial é uma falácia, só que logo depois vem a ditadura civil militar e bloqueia o debate da questão racial, tirando do censo a autodeclaração de pretos e pardos. Tanto é que nos anos 80, todos achavam que o negro era minoria na sociedade. E, atualmente, no período de desenvolvimento da adoção das políticas de ação afirmativa, quase todos os jornais lançaram editoriais contra. Na questão da representatividade, eu acho que há um erro nessa articulação, porque a representatividade é a reivindicação dos setores minoritários na sociedade. Os Estados Unidos, aumentar a representação, está certo, pois são 12% da população, então querem a representação no cinema, os talk shows na imprensa e na produção jornalística. No Brasil, acho que a ideia de representatividade é inadequada para negros e mulheres, por que são maioria no país. A questão concreta é que é necessário assegurar a representação política desses setores em correspondência à sua representação social. Então, é preciso criar mecanismos para que haja mais participações reais.

Jornal Contexto: Isso não contribuiria para que as futuras gerações cresçam mais antirracistas?

Juarez Xavier: Tenho trabalhado muito com a ideia de Milton Santos. Ele possui um mecanismo importante para a gente fazer análise de situações como essa, que é tão complexa que não pode ser vista apenas por um viés. Segundo ele, nós temos três globalizações, numa única globalização, uma perversa, uma de fabulação e a de possibilidade. Trazendo para o nosso campo, acho que acontece a mesma coisa em relação a qualquer produto que discute a questão racial: tem três possibilidades. A primeira possibilidade é perversa, ou seja, você pode participar da vida econômica, política, social a partir de uma representação fílmica, você está na tela, mesmo que isso não corresponda à sua realidade. Então, você tem uma perversidade que pode estabelecer mecanismo de cristalizar a segregação, é assim mesmo, continuará sendo assim, é o preto no seu lugar de subalternidade, o branco no poder, a mulher sofrendo violência, e o pobre segregado e se conforme com isso. Isso é perverso. Outra é a da Fabulação. Nós somos diferentes, mas nós somos humanos, olha como nós somos legais, como aparece nas telas, a menina rica, classe média namorando um menino preto, pobre da favela. Então, fica imposto que isso pode acontecer, mesmo que na vida real isso não aconteça. Porque a gente sabe que as relações afetivas na sociedade também estão condicionadas pelo racismo estrutural. Mas existe a possibilidade da pessoa se ver na mídia cultural e sonhar com um mecanismo. Como na “Pequena sereia”, a princesa é representada por Halle Barry, uma mulher negra. Entretanto, o que faz a diferença de verdade não é a representação, e sim o entorno da educação, a qual precisa problematizar isso, não romantizar, mostrar para a criança a leitura complexa da realidade. Dado que o real não corresponde com aquilo feito na produção fílmica. Mostrar que você pode criar possibilidades para isso, se organizando, lutando, discutindo a questão do racismo, fazendo enfrentamento.

Jornal Contexto: No caso do filme “A pequena sereia”, houve muita discussão e crítica, porque a princesa dos anos 80 era branca e ruiva, e a atual é preta com dread. Você acha que essa discussão é importante? E quanto essa polêmica afeta a luta antirracista?

Juarez Xavier: A primeira coisa que a gente tem que levar em consideração é porque a indústria cinematográfica faz isso? Público. Quer ampliar o espectro de consumidores do produto. Não tem outro motivo. Nós não podemos ser ingênuos em relação a isso. Segundo, a polêmica ajuda nisso, tanto é que nós estamos discutindo, talvez se fosse “A Pequena Sereia” como no clássico a gente nem estava discutindo isso. Então, olha como o tema é legal, vem para a academia, vai para o mercado, vai para a sociedade, mobiliza pessoas. É uma estratégia. E nós, que somos comunicadores, que somos jornalistas sabemos que nenhum debate entra na esfera pública porque ele é forte o suficiente, não, as agendas são pautadas. Então, olha só a repercussão que isso tem e nós não podemos deixar de considerar isso. Há, entretanto, um fator fundamental.

Jornal Contexto: Toda essa repercussão não contribui para o debate?

Juarez Xavier: Há um pensador chamado Achille Mbembe, que diz que a questão racial e do ódio antinegro é um fenômeno global, graças à escravização e que no mundo inteiro se odeia negro. E aí vocês estão vendo as manifestações racistas na Europa contra a população negra em Portugal, na Espanha com o Vini Júnior, por exemplo. Então, qualquer discussão global sobre a questão do racismo ganha palco, em especial em sociedades onde a população negra é abatida como no Brasil. De repente, é um lenitivo: nós matamos vocês na periferia, mas vocês estão no cinema. Olha como vocês são legais, olha como nós somos legais, olha o dread da menina. Então, é um fator que implica o debate crítico em função da situação e da realidade política e social do Brasil. Talvez na Nova Zelândia isso seja insignificante, mas no Brasil, em função do passado, tem um peso e nós temos que levar em consideração isso. Há um fator que eu acho importante: existem pessoas que têm a visão crítica em relação a isso, como eu. Existem pessoas que adoram essa fabulação e estão levando seus filhos pretos para assistir “A pequena sereia “. E existem pessoas que falavam ‘que princesa feia’, mas o pai dela é branco, mas a paixão dela é branca. Agora, é necessário educar para que ela saiba que não basta ter apenas a cara na tela de cinema, tem que ter direitos concretos na educação, saúde, mercado de trabalho, etc. Que devem vir acompanhados dessas possibilidades. É Paradoxal. Tem aspectos positivos e aspectos negativos, e eu não posso acentuar apenas aspectos positivos, porque isso não muda as condições de aniquilamento da população negra. As pessoas vão no cinema, choram, ficam emocionadas, mas os índices continuam mostrando a execução de um jovem negro a cada 23 minutos, e de estupro das meninas negras, de violência nos setores mais violentos da sociedade, segregação, aprisionamento. Mudou a realidade política da população, mas a gente tem que ter um certo distanciamento e uma visão crítica em relação a isso. Tem aspectos positivos e muitos aspectos negativos.

Jornal Contexto: Você se considera um otimista em frente à luta antirracista?

Juarez Xavier: A análise que a gente tem é muito pessimista. O aumento da brutalidade contra a juventude negra é assustadora, a juventude negra é um animal abatido sistematicamente na sociedade brasileira. A segregação contra a mulher negra, a subcidadania da população negra, a pobreza da população negra, que é incinerada nessas lixeiras humanas que são as periferias…. Na universidade, nós adotamos as políticas de ação afirmativas e os jovens pretos e pardos vieram para a universidade, mas não tem permanência estudantil. A gente continua assistindo os alunos entrando e saindo, os que ficam vivem numa pressão psicológica brutal, violentíssima. Então, não dá para ser otimista diante de um cenário como esse, a despeito de toda a luta política que a população negra tem travado praticamente sozinha na sociedade brasileira nesses anos todos. Mas eu sou otimista na ação, eu poderia até ter me aposentado, mas eu sou um ativista do movimento negro e nós pedimos para que os jovens negros viessem para universidade, então, me empenho politicamente para que a gente tenha uma universidade que possa acolher esses jovens. Não apenas para jovens negros, mas também as mulheres. A gente tem um trabalho forte na luta contra o assédio, ou seja, eu tenho que ser otimista na minha ação, no meu trabalho. Eu gosto de ser de vice-diretor? Gosto de estar na gestão? Não, não gosto. É que eu preciso estar. Então eu sou muito pessimista na análise. Porque o racismo ele não vai ser absorvido como uma bruma. Não, racismo é o aniquilamento, é a morte, a violência, a brutalidade, esse é o racismo e ele pode ser modificado com mudanças profundas. Então é muito difícil ser otimista mas, na minha opinião, nós temos que ser otimistas na ação, na defesa dessas bandeiras. Então, é assim que eu sou. Pessimista na análise, otimista na ação.

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