Suéllen Rosim reacende discussão sobre suposta apologia às drogas durante manifestação a favor da legalização da droga, ocorrida no último dia 03 de junho

Por Eduardo Álvares

Manifestantes protestam com cartazes na Marcha da Maconha –
Foto: Guilherme Matos

Nos últimos tempos, Bauru tem sido palco de um intenso debate envolvendo a prefeita, Suéllen Rosim, e suas constantes acusações de apologia às drogas. Na última semana, ela, por duas vezes em seu Instagram, fez posicionamentos polêmicos sobre a Marcha da Maconha, que aconteceu no último dia 3 de junho.

Em vídeo postado na mesma data, a prefeita afirmou: “Estou passando para esclarecer o assunto envolvendo a Marcha da Maconha prevista para acontecer em Bauru, que é um completo absurdo. Primeiro, que nós negamos qualquer tipo de apoio a um evento que faz apologia ao uso de drogas, enquanto o nosso papel é combater, é evitar, é trazer políticas públicas que tirem as pessoas das drogas e não o contrário. Então, nós negamos qualquer apoio ou participação nisso e eu encaminhei, inclusive, o caso ao Ministério Público. Aquilo que estava ao nosso alcance nós fizemos e continuaremos fazendo, não compactuamos com esse tipo de situação na nossa cidade”.

Um dos posicionamentos de Suéllen Rosim em seu Instagram. Disponível em: https://www.instagram.com/suellenrosim/

As declarações da prefeita foram polêmicas, alcançando centenas de comentários em suas postagens sobre o tema e instigando discussões. As principais críticas apontam que as afirmações foram generalizadoras, sem qualquer embasamento sólido, além de constituírem um ato contra a liberdade de expressão.

Para o psicólogo Guilherme Amorim, defensor da Marcha, esse tipo de afirmação não compreende a situação, pois está baseada “na moralidade cristã e na moralidade da Indústria farmacêutica. Porque a gente sabe que as drogas Ilegais foram tornadas Ilegais na perspectiva de controle social, na perspectiva de repressão de determinadas populações, a gente sabe o caráter intrínseco que está relacionado com a proibição da maconha, o caráter racista dessa proibição, numa tentativa de proibir certas manifestações culturais de dos povos escravizados que foram trazidos ao Brasil”.

Ele explica ainda que a prática de tornar Ilegais as substâncias não está associada com saúde e com cuidado. “Quando você parte desse princípio você compreende que essa questão de apologia ao uso de drogas, ela é uma questão moral que está pautada nessa visão da existência de drogas ruins e drogas boas. Essa moralidade vem associada justamente pelo preconceito, pelo estigma que as pessoas têm relacionadas aos usuários e substâncias”.

Vale ressaltar que, mesmo que a prefeita tenha tentado encaminhar o caso ao Ministério Público, a Marcha da Maconha é garantida pelo direito constitucional à liberdade de expressão e manifestação. Esse direito é protegido pelo artigo 5º da Constituição Federal, que estabelece que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” e que “é assegurado o direito de reunião pacífica, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização”.

A Marcha como espaço de debate

A Marcha da Maconha é uma manifestação social que ocorre em diversos países, com o objetivo de discutir a legalização da maconha, seus usos medicinais, as políticas de drogas vigentes e os direitos individuais dos usuários. Longe de ser uma apologia ao consumo indiscriminado de drogas, a Marcha busca promover o debate amplo e democrático sobre um tema relevante e muitas vezes negligenciado.

O evento reúne diversos tipos de públicos, desde apoiadores do uso recreativo, pacientes que encontram na cannabis uma alternativa terapêutica, pesquisadores, profissionais de saúde e defensores de políticas públicas mais conscientes. Desde a década de 90, quando foi criado, o evento se propõe a ser mais que um movimento a favor da legalização, mas um espaço de discussão política a respeito da substância.

Por exemplo, um dos grupos participantes da Marcha de Bauru foi a Associação Canábica Maria Flor. Esse grupo, de Marília, faz diferença na vida de milhares de portadores de patologias através do uso terapêutico da cannabis.

Esse cenário todo se mostra muito diferente aos que acusam que o evento é uma apologia, generalizando pessoas envolvidas nessa manifestação como defensores do uso indiscriminado. Também ignora a diversidade de perspectivas, motivações e toda discussão que é levantada.

Associação Canábica Maria Flor – Foto: Guilherme Matos

O estudante de psicologia e um dos organizadores do evento, Félix Esteves, explicou que a Marcha é um movimento que luta pela legalização da maconha em todas as suas formas de uso: medicinal, recreativo e religioso. “É um movimento que luta contra essa lógica do tráfico, a lógica do encarceramento, porque a gente sabe que a proibição causa muito mais danos do que o uso da cannabis, ano após ano vem encarcerando ainda mais pela proibição, sobretudo jovens negros e de periferia”.

A Marcha ocorreu em Bauru em 03 de junho último e articulou vários movimentos sociais. “Esses movimentos se juntaram para construir a Marcha da Maconha. Aconteceu de forma totalmente pacífica, juntou entre 300 e 500 pessoas, não houve nenhuma forma de violência nem entre os manifestantes, nem fora da Marcha. É um movimento que quer o fim do tráfico, o fim da guerra às drogas, e confia no potencial das mobilizações sociais para alteração da ordem vigente”, acrescenta.

Tweet ironiza repúdio da Suellen com presença de Jesus –
Foto: https://twitter.com/marechal752/status/1665098309889843206?s=20


A Cartilha da COMAD e a Redução de Danos

Anteriormente, durante o carnaval, Suéllen já tinha gerado polêmica ao se posicionar contrariamente à produção de uma cartilha pelo COMAD (Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas), em que o Conselho incentivava práticas de redução de danos.

Em vídeo publicado em seu Instagram, intitulado “ESCLARECIMENTO”, ela afirma: “Uma informação que nós recebemos da produção de um folder que está sendo produzido pelo COMAD. Esse folder traz apologia ao uso de drogas, inclusive explica segundo o próprio folder, como utilizar drogas com menos danos à saúde, um completo absurdo”.

“Primeiro, que a prefeitura não tem nada a ver. Nós estamos tomando todas as medidas necessárias porque nós, enquanto prefeitura, temos a obrigação na verdade de ajudar essas pessoas, de fazer uma campanha educativa sobre o quanto as drogas, o quanto o excesso de álcool, o quanto tudo isso prejudica a saúde, e não o contrário. Só queria dizer para vocês que nós estamos esclarecendo e vamos inclusive notificar o Conselho para que não haja continuidade dessa elaboração e muito menos a impressão desse tipo de material, nós jamais vamos admitir ou compactuar com esse tipo de informativo“, pontua a prefeita.

Cartilha do COMAD de estratégias de redução de danos – Disponível em: https://encr.pw/bpD3B

Após o posicionamento, a prefeitura impediu a divulgação da cartilha, que nem chegou a ser impressa. Assim, em mais uma situação, a colocação de Suellen foi muito criticada por enquadrar o documento, baseado em uma estratégia de Redução de Danos, como “apologia ao uso de drogas”.

A RD (Redução de Danos), no contexto de drogas, é uma abordagem do campo da saúde que visa minimizar os riscos e os danos associados ao uso de substâncias psicoativas, como drogas ilícitas e lícitas. Em vez de focar exclusivamente na abstinência, a redução de danos reconhece que o uso de drogas é uma realidade complexa e busca oferecer estratégias e intervenções que visam proteger a saúde e o bem-estar dos usuários, bem como da comunidade em geral.

Ela é respaldada por inúmeros estudos e pesquisas, além de contar com o apoio de organizações nacionais e internacionais de saúde, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Associação Internacional de Redução de Danos (IHRA), além de comumente orientar ações do Sistema Único de Saúde (SUS).

No entanto, a perspectiva que esse modelo propõe sofre duras críticas, principalmente por não propor a abstinência como única saída para a promoção de saúde, o que entra em conflito com valores morais fortes que pessoas tradicionalmente têm a respeito de drogas.

A diferença da Redução de Danos para outras abordagens tradicionais de saúde é você trabalhar com sujeito e qual objetivo que ele tem, com relação ao uso de substâncias. Se ele quer diminuir o uso, se para ele o uso que tem mantido está sendo adequado, se ele de fato quer atingir abstinência. É construído na base, com o sujeito, não tem nada imposto sobre o corpo do sujeito. O sujeito que vai decidir qual o objetivo do tratamento, e essa demarcação já é muito importante porque as abordagens tradicionais se pautam na ideia da abstinência, e, muitas vezes, o usuário não tá afim de deixar de fazer o uso, ou ele não consegue. A redução de danos entra nesse lugar, você conseguir ofertar cuidado em saúde, saúde mental, saúde física apesar do uso de substâncias”, afirma Guilherme Amorim.

Alinhado a isso, a cartilha da COMAD explica formas seguras de ingestão de substâncias. Mas, não pretende incentivar o uso de substâncias, buscando, na verdade, proteger a saúde e o bem-estar dos usuários, em uma clara prática de RD. Ela procura disseminar a saúde por meio de práticas que reduzam danos associados às formas de ingestão.

“Fazer apologia ao uso de drogas não é informar sobre o uso de drogas. A cartilha tem alguns objetivos, o principal é distribuir, construir um espaço de informação a respeito daquilo que o usuário está usando. Divulgar os efeitos neurológicos, os efeitos subjetivos, a quantidade de dosagem e a dose de risco para diminuir riscos de overdose”, explica o psicólogo.

Para ele, “é muito importante a distribuição de cartilha, porque você tira da perspectiva do não dito. Aquilo que não é dito, que não é conversado, reproduz um monte de violências, um monte de não saberes. Outro objetivo é que a cartilha, por si, é um dispositivo de aproximação entre quem está distribuindo e quem tá recebendo, e só esse contato é uma possibilidade de vinculação do sujeito com o dispositivo de saúde”.

Este tratamento é, segundo ele, “uma forma de escuta radical, que você se coloca junto com ao sujeito que faz uso de substâncias e constrói com ele caminhos que ele deseja. Caso ele não queira deixar de fazer o uso de substâncias, você tem que ofertar saúde. Falar sobre uso de drogas não é apologia, é você olhar diferente a questão e tentar se despir de instituições morais, que são bem pornográficas ao respeito de uso de drogas”.

Coletivo Bem Te Vi de Redução de Danos, presente na Marcha – Foto: Guilherme Mattos

A importância de um espaço de discussão

Diante das constantes acusações da prefeita sobre apologia ao uso de drogas, é importante refletir sobre a importância de uma discussão embasada em evidências, respeito e pluralidade de ideias. As crenças e valores individuais, incluindo os de natureza religiosa, devem ser respeitados, mas é fundamental reconhecer que a moralidade pessoal não pode ser imposta como padrão absoluto para toda a sociedade.

É natural que existam perspectivas diferentes sobre melhores práticas de saúde pública, é ideal, inclusive, que seja posto em discussão alternativas diferentes. Ao colocar em pauta alternativas diferentes, é possível ampliar o leque de estratégias e intervenções, aprimorando as políticas públicas voltadas para o uso de drogas.

A liberdade de expressão, garantida pela Constituição, assegura o direito de expressar nossas opiniões e debater questões relevantes para o bem-estar coletivo. No caso da Marcha da Maconha e da cartilha, é necessário compreender que tais iniciativas buscam fomentar discussões sobre políticas de drogas, promover o acesso a informações baseadas em evidência, visando minimizar os danos relacionados ao consumo.

Por isso, o diálogo construtivo e o envolvimento de especialistas são fundamentais para uma abordagem mais efetiva e humana no que diz respeito ao uso de drogas. Enquanto acusações infundadas, baseadas em uma moral específica, podem representar um retrocesso e um desrespeito a profissionais da saúde que estudam e se dedicam sobre determinadas estratégias.

Cultivar a liberdade para não colher a guerra – Foto: Guilherme Mattos

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