Uma nova geração desconstrói uma espiritualidade hereditária? É possível conciliar espiritualidade e religiosidade com uma visão de mundo pautada na ausência de preconceitos e respeito à diversidade?

Por Léa Secchi

O nascimento de uma nova geração traz consigo diversas mudanças culturais, antíteses e novas ideias, dentre essas, ideologias religiosas contrárias às dos adultos do século 20, que sofrem transformação no contexto contemporâneo atual. O choque geracional, em particular promovido pelas diferenças morais no âmbito espiritual, antecede a atuação de ambos os grupos na quebra e na sustentação de preconceitos diversos.

Foto: Freepik

Na atualidade, há uma nova forma de interpretação religiosa pela juventude, onde não é mais necessária a organização comunitária das práticas. Existe um processo de individualização de condutas, não mais determinadas pela tradicionalidade familiar ou um senso de “hereditariedade” das mesmas, mas sim pela subjetividade do indivíduo. As pessoas identificam em instituições religiosas diferentes problemáticas reprodutoras de preconceitos, que as fazem optar pela busca de um propósito próprio não embasado por fundamentos de quaisquer doutrinas específicas, ou ainda os fazem não optar por busca alguma.

Ao desenrolar da vida adulta e suas descobertas, o encontro de um propósito pessoal promove uma maior identificação com diferentes tipos de discursos, e a transformação do ambiente coletivo faz com que espaços de confraternização se tornem mais receptivos e passem a promover maior acolhimento a uma geração moderna. Esse movimento de espiritualização protagonizado por jovens é pautado na reprodução dos ideais de suas respectivas doutrinas através não só de encontros presenciais, como grupos de jovens e células, mas também pela internet, em redes como o TikTok, Instagram e Twitter.

Na contemporaneidade, as mídias sociais têm um papel muito importante quando relacionadas à propagação de conhecimentos diversos, pois servem como portais para o novo e ao mesmo tempo para o antigo. Existe hoje uma comunidade digital que integra diversas pessoas, em sua maioria mais novas, com o propósito de compartilhar suas experiências e vivências espirituais. Isso promove uma interdependência de práticas, antes não aderidas pela falta de automatização e divulgação digital de tais conteúdos. Não havia outra forma de expressão religiosa e espiritual senão aquela aderida em uma comunidade física, onde a fidelidade era ao dogma e não ao o ser subjetivo e aos ensinamentos em que deposita sua fé.

Foto: Alexander Gold / Shutterstock

Éticas teológicas diversas e distintas sempre influenciaram a vida da população brasileira, a pluralidade cultural do Brasil dá origem a diversas vertentes espirituais e religiosas que com o passar do tempo perdem e ganham novos seguidores. No momento atual seus aderentes mais novos, os gen-z, adentram a cena buscando questionar costumes e tradicionalidades que muitas vezes ainda preditam intolerâncias.

As diferenças entre religião e espiritualidade

Carla Dendasck, PhD em Psicanálise, Doutoranda em Comunicação e Semiótica, Mestre em Ciências da Religião, Licenciada em Biologia e Bacharel em Teologia, aborda em seu site as principais distinções entre os dois campos, que se interligam de forma harmônica.

A religião possui aspectos antropológicos, psicológicos, históricos, culturais e até mesmo políticos, e seu impacto no mundo contemporâneo é promovido pelas mudanças nas relações determinadas por uma nova geração. Ela é delimitada como uma organização composta por doutrinas, ideologias, dogmas, e regras a serem seguidas por seus fiéis, em prol da prática da fé, espiritualidade, e de ideais comuns a um grupo.

Está ligada à compreensão terrena sobre o conhecimento divino e às questões que afetam os indivíduos deste planeta, e pode atuar como uma ponte com o sagrado. É um meio de fortalecimento das questões de ordem espiritual, e algumas pessoas apenas conseguem fazer isso se pertencentes a um espaço de comunhão, frequentando uma instituição para tanto.

Quando passam a frequentar tais espaços, os sujeitos incorporam e praticam suas respectivas ideologias, não necessariamente interligadas ao campo da espiritualidade. Seguir tais preceitos promove uma noção de pertencimento ao espaço físico em que exercem sua fé. Muitos, entretanto, se direcionam somente pelas ideias impostas nesse convívio e abrem mão da conexão entre os campos, vivendo à mercê da aprovação da comunidade, afinal a falta de pertencimento gera frustração e exclusão.

A espiritualidade independe de uma organização para que possa ser manifestada, sua atuação é sempre de ordem individual, um mecanismo que faz com que criemos uma conexão com o plano imaterial, isto é, com o divino.

Ela não advém de doutrinas, ideologias, dogmas, ou regras, mas parte do pressuposto que a busca por si mesmo é a busca por um propósito maior, fortalecedor de uma fé, do ser e sua alma. Sua unicidade é estabelecida pela forma como cada indivíduo a cultiva, levando em conta que a interpretação do universo é específica para cada um. 

Ela não depende da religião, ainda que esta seja um meio de prática da mesma, não o único. Muitos tendem a se afirmar espiritualizados, quando, na verdade, são apenas religiosos, afinal, nem sempre uma pessoa espiritualizada pratica uma religião. O ideal proposto por Dendasck, seria que a espiritualidade estivesse em harmonia com as questões de ordem religiosa.

Foto: Marina Silva / Correio

Frei Betto, Frade dominicano, jornalista graduado e escritor brasileiro, correspondente do site Contém Amor, expõe que é possível pensar nesses dois campos como mecanismos isolados, mas há importância e influência da religiosidade e da espiritualidade nos mais diversos contextos.

A espiritualidade é uma dimensão constitutiva do ser humano, transcendente e imanente a nossa subjetividade, que tem uma potencialidade neurobiológica que pode ou não ser cultivada por nós. A religião, por sua vez, surgiu como forma de controle da sociedade agropastoril e seus grandes relatos disciplinam o caos ético, ao mesmo tempo que interioriza o poder do doutrinarismo autoritário, estabelecido ao longo da história.

O escritor menciona que hoje o que está em crise não é a espiritualidade, mas sim as formas tradicionais de religião. “Num mundo secularizado os valores são substituídos pelas ciências; o ser pelo ter; o ideal pelo desejo; o altruísmo pelo consumismo. E agora nos deparamos com uma espiritualidade pós-axial, laica, pós-religiosa, centrada na autonomia do indivíduo”.

O Frade conclui apontando que “o que caracteriza essa espiritualidade pós-moderna é, de um lado, a busca, não do outro, mas de si, da tranquilidade espiritual, da paz no coração. Nesse sentido, trata-se de uma espiritualidade egocêntrica, centrada no próprio ego.”

A Geração-Z

Em entrevista, a aluna de Jornalismo da USP – São Paulo, Isabella Gargano dos Santos, de 18 anos, relata sua experiência relativa à temática: “Sou agnóstica e não possuo religião”. Ela foi criada pelo pai católico e a mãe espírita, e vivenciou o catolicismo estudando em uma escola cristã, mas compartilha que não sofreu pressão para seguir qualquer um dos caminhos de sua família.

Ainda que muitas pessoas mais novas adentrem religiões pela influência dos pais e sejam levadas a frequentar ambientes religiosos desde quando crianças, elas só realmente possuem uma autonomia de questionamento, identificação e escolha, mais tarde na vida, quando adultas.

A identificação com a doutrina pode ser impulsionada por diversos fatores, assim como pode ser modificada com o passar do tempo. É possível que esse “encontro” aconteça em ocasiões específicas, quando a sustentação da autonomia do indivíduo é abalada por um evento ruim, por exemplo, que o leva a buscar o amparo proporcionado por uma comunidade religiosa. Ou que seu autoconhecimento o tenha levado para um local onde consegue promover sua subjetividade enquanto compartilha de uma doutrina comum a um grupo.

No mundo tecnológico dos dias atuais, as redes sociais proporcionam uma facilidade de acesso imensa à conhecimentos diversos, e podem influenciar na escolha da independência religiosa para com os familiares. Elas extrapolam as bolhas em que vivemos e nos permitem novos aprendizados. O diferente é mais fácil de ser encontrado pois não se limita ao físico que está à nossa volta. Entretanto, a estudante diz acreditar não ter sofrido tal coerção das mídias na tomada da decisão de ser agnóstica.

Gargano conta que se incomodava com comportamentos que percebia em algumas doutrinas populares, como situações de incentivos a atos machistas e homofóbicos, por exemplo, “Nesses ambientes não havia espaço para questionamentos”.

Apesar de religiões ainda suportarem muitos preconceitos, Isabella vê que existe uma desconstrução sendo pautada entre os jovens em diversos ambientes, buscando renovação de ideias. “Os mais novos, ativos dentro desses locais, os frequentam por um vínculo pessoal e separam as questões problemáticas sustentadas por determinado dogma, eles não as reproduzem em seu cotidiano.”

A aluna menciona que não se sente parte de uma comunidade, e consegue identificar que outros grupos criam laços muito fortes entre seus membros e compartilham de uma união singular, que não está inclusa na prática autônoma. “Há um acolhimento proporcionado pelas comunidades religiosas”. 

Isabella por fim explica que decidiu cultuar sua espiritualidade de maneira individual por não se encontrar subjetivamente dentro das crenças de seus pais, ainda que tenha experienciado muito dos conhecimentos que lhe foram passados conforme crescia. A espiritualidade, ainda que em potencialidade de ser herdada, não é em sua natureza hereditária. 

Preconceitos, Tiktok e União Ecumênica

A geração Z domina o TikTok, e desde seu boom durante a pandemia o transforma em uma plataforma abrangente ao ponto de ser uma das maiores comunidades digitais quando falamos da propagação de conhecimento. A abordagem de vivências religiosas diversas, sejam cristãs, muçulmanas, judias, umbandistas, espíritas ou bruxas, são um dos pontos difundidos no meio, e criam um coletivo onde se pode debater temas sensíveis ou desmistificar diversas visões.

Foto: Shutterstock

Muitos segmentos espirituais e religiosos são abordados pelos jovens na rede, impulsionando a criação de hashtags como #ChristianTikTok, #Manifest e #WitchTok. Tudo isso se fortaleceu durante a época da Covid19, quando as redes sociais se tornaram a alternativa para manter a conexão entre as comunidades religiosas e os praticantes da espiritualidade. É provável que o isolamento tenha promovido uma junção de forças, fazendo com que a integração tecnológica tivesse uma nova funcionalidade, essencial quanto a propagação de conhecimento e respeito à diversidade, seja ela religiosa promotora de uma harmonia ecumênica entre diversas doutrinas, ou seja ela de âmbito social.

Os dogmas e discursos ideológicos moralistas, antiquados e preconceituosos que muitas religiões trazem até hoje, são questionados. Há reflexão e troca entre os usuários, debates sobre a aderência de discursos conservadores ou progressistas perante suas respectivas vertentes. O que acaba por estabelecer um conflito entre dogmas e o ideal de uma sociedade pautada no respeito à diversidade, mas também promove liberdade de ação e pensamento, busca de virtudes morais e evolução da consciência de forma conjunta, e ainda que a individualidade se sobreponha à comunidade física, no meio digital há partilha. 

Individualidade, Solidariedade e Diversidade

A busca por um propósito é diferente para a nova geração, que se vê incumbida do papel de mudança, reestruturação, e combate a discriminações, com o objetivo de quebrar os aspectos ditadores e exclusivos, e promover o acolhimento e inclusão do próximo.

Muitas ações podem ser realizadas de forma conjunta ou individual. A valorização do próximo caminha com a valorização do ser, único e subjetivo. A religião é um espaço de diversidade de indivíduos e é importante, assim como a autonomia de seus praticantes. 

Foto: iStock

O compartilhamento da fé, no final das contas, é sobre união e comunidade, e assim como as gerações se sucedem, elas também sofrem mutações, a organização de crenças no futuro terá a projeção que os jovens do presente atrelarem a importância da caridade e do próximo, ou da importância do seu próprio sujeito perante seus propósitos.

A solidariedade pode ser vinculada a uma ação religiosa, mas ainda assim é uma prática individual, que pode ser exercida em conjunto com a espiritualidade. A caridade promove o apoio a grupos segregados e pode ser feita sem qualquer orientação religiosa, mas ainda é o maior preceito religioso e espiritualístico. No entanto, é imprescindível que seja humanitária, visando o exercício da cidadania.

A juventude intrínseca à alma é sinônimo de aprendizado. Seja na idade de 70 anos ou 18, os que mantém a chama da mudança sempre acesa dentro de si, também mantém suas mentes e corações sempre jovens. O conhecimento sempre pode ser renovado, cabe então às próximas gerações que se renovem em busca de espaços que os caibam, assim como esses espaços também devem se transformar para receber novos integrantes. 

Para saber mais:

Deixe um comentário