Coletivo produz curta-metragem sobre a importância do levante na construção da identidade política das mulheres lésbicas no Brasil
Por Sophia Picchi

Capa do curta-metragem Ferro’s Bar (Foto: Cine Sapatão/Instagram).
Uma reflexão sobre aquele que é considerado como o primeiro ato político protagonizado por lésbicas no Brasil a qual se tem registro. Este é o foco do curta-metragem Ferro’s Bar, produzido pelo coletivo Cine Sapatão.
O documentário foi exibido no último dia 17 de maio durante evento no Ministério dos Direitos Humanos para o Dia Internacional de Combate à LGBTfobia, na Esplanada dos Ministérios, que reuniu parlamentares e ativistas em reuniões, cerimônias e mostras artísticas.
O Ferro’s foi um bar no centro da capital paulista frequentado por mulheres lésbicas, que utilizavam o espaço para socializar e promover debates sobre suas vivências sociais e políticas. Nesses encontros, membras do Grupo de Ação Lésbica-Feminista (GALF) comercializavam edições do boletim ChanacomChana, ação que foi proibida pelos dono do estabelecimento.
No dia 19 de agosto de 1983, as militantes convocam a imprensa, ocupam o local e leem um manifesto que denuncia a discriminação e lesbofobia sofrida. O protesto resulta no recuo da decisão do proprietário e, devido à mobilização causada, torna-se um símbolo da luta lésbica no Brasil.

Embora não fosse o único bar frequentado por lésbicas no centro de São Paulo, foi no Ferro’s que aconteceu o levante (Foto: Memorial da Resistência de São Paulo/Acervo Folha de S.Paulo).

Rosely Roth, uma das líderes do levante, durante o programa de Hebe Camargo, em 1985 (Foto: Acervo Um Outro Olhar/Youtube).
O Levante do Ferro’s Bar completa 40 anos, mas ainda é pouco presente na memória coletiva brasileira, afirma Nayla Guerra, diretora, roteirista e pesquisadora do curta-metragem. “Apesar da sua importância ele é muito pouco discutido e falado, a gente não tem nenhum filme que aborda ele, não tem livros sobre esse fato histórico. É um fato muito sub representado”, comenta.
“As mulheres que formaram o movimento no passado foram fundamentais para eu estar onde estou hoje em dia”, diz a cineasta, graduada pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. Ela relembra a trajetória do Cine Sapatão, que surgiu em 2017 e concebe projetos audiovisuais para a afirmação da história do movimento e suas pautas em diferentes contextos.
“O coletivo desde a sua formação tem uma preocupação muito grande com a questão da memória. Das fundadoras, nenhuma delas eram do cinema, todas eram da militância lésbica. Elas se conheceram na militância lésbica e fundaram coletivo para usar o cinema como estratégia de luta dentro do movimento lésbico”, diz.
A ideia do curta ressoava nas discussões do coletivo desde 2019, mas o edital do Programa de Ação Cultural (ProAC) para financiamento público foi aprovado um ano depois. “O edital que a gente ganhou era de licenciamento de curta-metragem para a Cultura em Casa, que é uma plataforma da Secretaria de Cultura, da Spcine. Assim, a produção oficial começou em janeiro de 2021 e durou até janeiro 2023, que foi quando o filme foi finalizado”, recorda.

A produtora cultural Nayla Guerra, autora do curta-metragem (Foto: Acervo Pessoal).
A dificuldade em conseguir apoio ao filme revela as burocracias e desfalques enfrentados pelo audiovisual LGBT no Brasil. Ganharam dois editais públicos de suporte financeiro, o ProAC (em categoria específica para curta-metragens sobre grupos minoritários) e o Prêmio Nascente USP, mas o dinheiro era insuficiente para o projeto. Somando menos de 30 mil reais, tiveram de criar um financiamento coletivo para finalizar o filme e comprar direitos de imagem.
“Cinema custa muito caro e qualquer pessoa que conhece um pouco sobre produção sabe que é um valor pequeno para fazer um projeto como esse, ainda mais na pandemia”, afirma ela.
A campanha de doação, apesar de trabalhosa, trouxe impactos positivos na popularização do curta. “Ele acabou fazendo com que conhecessem o projeto porque a gente teve que divulgar muito para convencer as pessoas a doarem, acabamos tendo um alcance em relação a essa história. Pelo menos 200 pessoas tinham muito conhecimento sobre o que era projeto e quando o filme ficou pronto ajudaram na divulgação”.

As gravações ocorreram entre os dias 19 e 29 de agosto, nos quais se comemoram o Dia do Orgulho Lésbico e Dia da Visibilidade Lésbica. (Foto: Cine Sapatão/Instagram).
O processo de gravação das 15 entrevistas com mulheres que frequentavam o bar na época foi, em suas palavras, “muito potente”. Durante 10 dias, conversaram com frequentadoras do Ferro’s e antigas militantes. Muitas delas nunca tinham sido entrevistadas, nem contado sobre suas experiências anteriormente. “Elas se emocionaram muito nas entrevistas, a gente se emocionou e para nós foi muito impactante ouvir algumas coisas que não estão registradas em nenhum outro lugar, mas são fundamentais para pensar na nossa história”.
O grupo recorreu à pesquisa de documentos históricos sobre a jornada da militância lésbica na Ditadura Militar e acabou por contribuir no Arquivo Lésbico Brasileiro – que estava surgindo no mesmo período de produção do curta. Em instituições focadas na história feminista, como o Centro de Informação Mulher (CIM), o acervo era escasso. “Ele tinha pouquíssima coisa sobre lésbicas. A gente não conseguiu encontrar concretamente muitos materiais que nos serviram”, lamenta.
O resgate de fotografias para uso no filme foi complexo, pois “muitas dessas mulheres não queriam ser fotografadas em espaços lésbicos naquela época porque a lesbinidade era condenada, perseguida”. A diretora explica que, no contexto ditatorial, mulheres lésbicas eram alvos de violência – sendo presas e violentadas com aval do Estado. “As fotografias eram uma prova disso, então elas evitavam tirar fotos em espaços que poderiam denunciá-las”.

Convencer pessoas de fora da comunidade lésbica sobre a importância do filme para a sociedade brasileira foi um desafio para o coletivo (Foto: Acervo Bajubá).
Por fim, Nayla conta que, apesar de já ter um acordo para o lançamento do filme em plataforma digital, ainda não há uma data oficial. “Primeiro, é importante a gente circular ele em festivais e eles não aceitam filmes que estão online. A gente pediu para a Secretaria dar uma segurada e não colocar o filme na plataforma ainda, mas ele deve vir daqui a uns 2 anos, assim que a gente terminar de circular em festivais”, finaliza.
Além da produção de filmes, o coletivo organiza cineclubes gratuitos e participa de mostras, debatendo assuntos variados da lesbianidade.
A divulgação de exibições do curta-metragem Ferro’s Bar em diferentes cidades e eventos ocorre no perfil do Instagram @filme.ferros.bar.
