Por Laura Hirata Vale

A Copa do Mundo de Futebol Masculino, de quatro em quatro anos, diverte e emociona o mundo. Vemos gols, jogadas e dribles maravilhosos. Também assistimos faltas, lesões e eliminações dolorosas. Fora de campo, esse grande evento esportivo nos proporciona a descoberta das características, polêmicas e curiosidades do país-sede.

Em 2022, conhecemos o Catar, um país da Península Arábica, e seus vários contrastes e controvérsias. Nessa reportagem, em uma conversa com Joelson Gonçalves de Carvalho – formado em Economia e professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) –, veremos as razões e causas do abismo existente entre os cataris super ricos e os cataris pobres e trabalhadores.

Segundo Joelson, a primeira grande causa desse abismo é a lógica do sistema capitalista de produção. “O sistema, independentemente do país, para ser lucrativo para alguns, precisa fazer a exploração da força de trabalho. Então essa primeira característica é estruturante, para um país capitalista”, explica. O Catar, especificamente, possui uma característica peculiar: a partir de sua independência, em 1971, sua construção nacional mostra que “é muito mais um país ‘inventado’, do que um país historicamente consolidado a partir de diversas heranças”, disse o professor.

Joelson descreve que, na região dos Emirados, “a forma de ocupação recente acabou gerando outras condições estruturais para a desigualdade”. No Catar, podemos ver que a economia, a política e a religião acabam se misturando e fundindo. É um país autocrata, onde a religião acaba interferindo nas decisões governamentais, “portanto, não é um país laico nem democrático; então, essa é uma outra condição que contribui – de maneira estrutural – para a desigualdade”, completa.

O Catar tem como geração de renda o petróleo e o gás natural. Por causa disso, “a riqueza está monopolizada nas mãos de uma elite, que consegue ter um padrão de vida muito além do que o de muitos ricos do ocidente capitalista”, contou Joelson. Dessa forma, podemos pensar que, se os pobres cataris e pobres imigrantes do Catar fossem equivalentes à classe média ou alta brasileiras, a desigualdade continuaria muito grande, porque os ricos cataris monopolizam uma renda de dimensões enormes.

“Quando se pensa no projeto de país que, nos últimos anos, foi colocado – não apenas no Catar, mas em grande parte da Península Arábica –, pode-se perceber que, para a efetivação dele, precisa-se de um grande contingente de trabalhadores, que acabam se sujeitando a condições de trabalho extremamente precárias, com salários muito baixos. Então, para construir esse éthos de modernidade, necessita-se de muitos trabalhadores braçais, muitos dos quais são imigrantes de outros países. Portanto, é por isso que temos cataris super ricos”, explica Joelson.

Durante a Copa, a pergunta ‘quem tem acesso aos jogos?’ era feita a todo momento. Os cataris podiam adquirir um ingresso especial, que custava cerca de 58 reais (preço convertido). O salário mínimo no Catar, por sua vez, gira em torno dos 1400 reais. Por isso, será que os cataris que recebem somente um salário mínimo conseguiriam ir assistir aos jogos da Copa? “Em uma resposta rápida e simples, sim, eles conseguiriam; pois com uma renda de mil, consegue-se comprar um ingresso de 50. Mas temos que lembrar que a pobreza é multidimensional; não podemos pensar na pobreza única e exclusivamente a partir da renda”, diz Joelson.

O professor levanta questões que normalmente não costumanos pensar, como, por exemplo, os fatores que fazem com que as pessoas pobres ratifiquem sua condição de pobreza. “Nesse caso específico, a renda permitiria a compra de ingressos, mas será que a pessoa teria acesso? A Copa do Mundo foi pensada para trabalhadores? Como foi o processo de venda de ingressos? Quantas pessoas tiveram acesso a ingressos via internet? Os pobres teriam acesso à compra de ingressos, mesmo tendo renda para comprá-los?”.

Podemos usar o Brasil para exemplificar o problema de falta de acesso aos jogos de futebol. Se, hipoteticamente falando, os ingressos dos clássicos jogos de quarta-feira custassem dez reais, os trabalhadores que recebem um salário mínimo de 1200 reais conseguiriam ir aos estádios? A resposta imediata é sim.

Mas o professor contesta: “os jogos começam às nove, dez da noite, e acabam quase meia noite. Um trabalhador, que trabalha de manhã, que demora horas para ir de um lugar a outro por causa do transporte público, daria para ele chegar no jogo? Não, não daria. Então, mesmo cabendo no bolso, aquele espaço não é para ele, porque foi pensado em um horário e em uma logística que ele continua não tendo acesso, mesmo que caiba no bolso”.

Joelson explica ainda que como o trabalhador mora fora da zona central da cidade, ele é privado do transporte público de qualidade, está a horas de distância de seu local de trabalho, lazer, etc. “Esses atravessamentos são necessários para não pensarmos que é barato, e caberia, neste caso, no bolso do pobre brasileiro. E é a mesma coisa com o Catar”. Isso mostra que, lá como aqui, os contrastes são mais complexos do que se imagina.

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