FLAVIA TOFOLI
“Eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não remunerado”. Silvia Federici

A italiana Silvia Federici é uma filósofa contemporânea, escritora, feminista, ativista e professora na Hofstra University, em Nova Iorque. Durante a década de setenta, ela ajudou a fundar o Coletivo Internacional Feminista. Entre as principais linhas de pesquisa de Federici, destacam-se as relações de exploração econômica dos trabalhos de cuidados e serviços domésticos que predominantemente são executados por mulheres, e, a partir dessa linha de estudos, nasceram suas obras mais conhecidas: Calibã e a Bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva; Mulheres e caça às bruxas.
Em 2019, a filósofa veio ao Brasil para participar do Seminário Internacional ”Democracia em colapso?”. Durante o seminário, Federici questionou se realmente houve em algum período da história moderna da humanidade em que vivemos a concepção da democracia em sua totalidade, ou seja,”governo do povo para o povo”, que, por sua vez, costuma ser pregado por sistemas capitalistas liberais como o norte-americano. De acordo com ela, essa premissa nunca existiu, pois o capitalismo moderno é fundado a partir de conquistas, colonização, escravidão e caça às bruxas.
Mas afinal, o que é essa caça às bruxas?
A “caça às bruxas” é um termo frequente nas publicações de Federici, dando até mesmo título às suas publicações. Apesar de remeter ao leitor em primeira circunstância, a caça às bruxas da Idade Média, a autora vai além, e, por sua vez, mostra como os mecanismos de influência do capital ainda hoje praticam essa barbárie para exploração de terras e trabalho feminino.
Em Mulheres e caça às bruxas, Silvia Federici evidencia como o processo de cerceamento de terras afeta de forma diferente homens e mulheres. O fim dos direitos consuetudinários, taxação e privatização de terras que surgiram na Europa Medieval foram fundamentais para a promoção das desigualdades sociais. Diante desse cenário, a propagação da caça às bruxas vislumbra não apenas a perseguição às mulheres por viés moralista, mas também, para validar a desapropriação de terras em posse das vítimas e o uso de violência para tal finalidade.
Num trecho do livro, ela escreve que “apontar e perseguir as mulheres como ‘bruxas’ preparou terreno para o confinamento das europeias no trabalho doméstico não remunerado. Isso legitimou sua subordinação aos homens, dentro e fora da família. Deu ao Estado controle sobre sua capacidade reprodutiva, garantindo a criação de novas gerações de trabalhadores e trabalhadoras”.
Caça às bruxas na atualidade
A perseguição religiosa às mulheres e o fim da escravidão não foram suficientes para por fim a caça às bruxas. Na atualidade, a especulação comercial tem impactado na continuidade à violência contra as mulheres.
Nesse contexto, as populações da África subsaariana, América Latina e Sudeste Asiático são as mais afetadas pela regência irrefreável do capitalismo. Na África e Índia, até pouco tempo, mulheres tinham acesso às terras comunais, na qual poderiam praticar a agricultura de subsistência. Entretanto, o uso dessas terras para esse tipo de prática encontra-se sob forte ataque das políticas do Banco Mundial, alegando que essas terras são um “patrimônio morto”, ao menos que haja o registro e a utilização delas como moeda de troca para obter empréstimos para exercer atividades comerciais.
“Contudo, observa-se que as acusações por bruxaria são mais frequentes nas áreas destinadas a projetos comerciais ou nas quais processos de privatização de terras estão em curso (como nas comunidades tribais da Índia) e quando a acusada possui algum terreno a ser confiscado”, escreve a autora..
O valor da dupla rotina das mulheres
A imagem da mulher que trabalha fora, cuida da família e mantém seu lar organizado com a mais primorosa harmonia. Essa imagem da “super mulher” é irradiada pela mídia, a ex-primeira dama Marcela Temer já foi modelo para tal, sendo designada pelo meio jornalístico como “bela, recatada e do lar”. No entanto, as convenções sociais criaram a normalização dos serviços de cuidado e trabalho domésticos vinculados às mulheres. Essa base estrutural apenas serviu para consolidar a exploração da mão de obra feminina por meio de mecanismos afetivos.
A organização Oxfam produziu o “Relatório Tempo de Cuidar”, de acordo com o relatório o valor dos trabalhos domésticos é avaliado em 10,8 trilhões de dólares anualmente. Esse valor ressalta a disparidade entre as atribuições dos serviços domésticos entre homens e mulheres, a balança da dupla jornada de trabalho tende a pender mais para o gênero feminino.
A luta por condições igualitárias para mulheres ainda está longe de ser alcançada, mas começa a surtir efeito, pois países como a Argentina já começam a colocar em pauta o trabalho doméstico feminino em seus planos de política social e de aposentadoria. Pode ser um passo para a valorização da dupla jornada da mulher.
